jul 26, 2014 Air Antunes EDUCAÇÃO 0
“O que alimenta o círculo quase hermético da literatura Brasileira são sos vínculos de amizade, esse amor, essa crença na nossa luta. Isto eu chamo de crença na condição humana.
Não vou falar sobre minha obra. Falando da nossa luta,, estarei falando de mim mesma, porque sou eu própria participante e testemunha desta guerra com testemunhas e participantes. Eu não estou cansada. Num país, como o nosso, onde há miséria, onde 60% dos eleitores são analfabetos, o que nos faz, a nós escritores, continuar nesta cruzada, é a certeza e a confiança na condição humana.
O que podemos fazer e levar nos centros, nas cidades que visitamos?
Vou contar a vocês uma noite simbólica, que ficou sendo a noite de minha luta. Certa vez eu e Ricardo Ramos fomos convidados a visitar Presidente Prutende. Fazia um frio de cão. E, de ônibus, fomos pela estrada afora. Um ônibus desconfortável, cheio de poeira, a garoa caindo, eu e ele sacolejando. Ela ria. Descemos num café caindo aos pedaços, na beira da estrada. Uma imundície. E o Ricardo disse: ´Lygia, agora nós vamos ressuscitar´.Fez o pedido. O homem disse que faria uma batida- o homem, imundo. O Ricardo, com aquele jeito de alagoano, finíssimo, disse: ´A minha receita é especial. Me traga limão, açúcar e uma pinga da melhor qualidade´. O homem retrucou: ´Mas essa é a que eu faço´. Ai o Ricardo disse: ´Ah, mas eu tenho um segredo, que você não vii´. O homem perguntou: ´Qual é?´E o Ricardo : ´Não posso contar´.
Tomamos aquela batida, que nos salvou. Eu estava gelada. Chegamos a Presidente Prudente, fomos levados a uma escola onde uma jovem professora nos recebeu. Apresentou o Ricardo Ramos como professor. E a mim, apresentou-me como poetisa. Para não deixá-la mal, eu disse: ´De fato, eu escrevi algumas poesias. Mas eu era jovenzinha´. Eu disse ao Ricardo: ´O que significa isto?´ Uma noite de nossas vidas! Você devia estar amando. Eu podia estar lendo, ouvindo música, dançando tango. O que estamos fazendo aqui?´ Ele disse: ´Lygia, é assim mesmo. É assim mesmo´. Aí nos despedimos muito comovidamente. Essa noite ficou sendo um símbolo na minha vida de escritora. Um ofício duro. Dinheiro , zero. Recebi só um ramo de flores.
Hoje, antes desta palestra, uma jovem repórter olhando para mim com uma certa admiração, disse: ´Mas há muito tempo que a senhora vem falando. Adianta?´ Eu digo: ´Adianta!´
A minha é uma bandeira esfarrapada , de uso antigo.
O Rodolfo Konder está fazendo este trabalho deslumbrante em São Paulo. Está organizando a vida cultural desta cidade de uma maneira tão escandalosa que os jornais o estão denunciando porque existem eventos culturais em excesso. Isso é uma maravilha. O secretário, criticado, porque há eventos demais! É assim que se recupera um país.
Vejam: Rodin veio para cá. Passei por lá e vi uma fila quilométrica de gente jovem, de sandália havaiana, para ser estátuas de um francês que nem sabiam que existiu. Nem sabem que existe a França. Não sabem nada. Saiu de lá um jovem com os olhos cheios de lágrimas e disse: ´É extraordinário!´Eu acredito nesse povo , que quer sim uma cultura, que quer sim um livro, um escritor. Um dia, numa reunião, eu disse: ´Vocês não gostam da gente, nós não somo amados. Amados são os jogadores de futebol, os cantores´. Quando terminei, um jovenzinho levantou-se e disse: ´Dona Lygia, a gente até que ama o escritor, mas é um tímido amor´.
Eu aceito esse tímido amor. Quem sabe daqui a cinquenta anos os nossos livros estarão aí beijados, lidos, ovacionados. Vamos continuar na luta. Vamos prosseguir com esta fé, estas virtudes teológicas: fé, esperança, caridade. A caridade é o amor ao próximo, o respeito ao próximo. A fé é este ardor. A esperança é a prória vontade de saber que um dia nós vamos sair desta batalha, não com glória. Ninguém está ligando para nada. O Callado, num discurso na Academia Brasileira de Letras disse: “Imortal é aquele que não tem onde cair morto´.
Não é o dinheiro e a imortalidade que importam, mas apenas esta vontade de passar para o próximo a nossa fé, e acima de tudo, a nossa palavra. Eu aposto na palavra. Esta aposta é muito importante para mim. Agora, a coroa de louros, murcha. Eu acredito na luta. E nós, escritores, estamos em todos os nossos livros. Por mais que você escamoteie, camufle, ponha máscaras, de repente você se encontra nos seus livros.
Eu sou minhas personagens, e ao mesmo tempo não sou. Porque a gente vai-se repartindo, se entregando, se distribuindo, se multiplicando, e é muito bonita essa multiplicação nos personagens.
Essa doação que o escritor faz em relação à palavra é total, absoluta e extraordinária. O pensamento verte sangue. E é a verdadeira compensação que o escritor tem. Não compensações materiais, gloriosas, mas a de dar-se a um personagem e depois encontrar-se nele.
E eu estou nas minhas personagens”.
(Palestra proferida na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, em 18 de julho de 1995).
“Eu sou minhas personagens, e ao mesmo tempo não sou. Porque a gente vai-se repartindo, se entregando, se distribuindo, se multiplicando, e é muito bonita essa multiplicação nos personagens”.
Lygia Fagundes Telles, nascida Lygia de Azevedo Fagundes, nasceu em São Paulo em 19 de abril de 1923, escritora brasileira, galardoada com o Prêmio Camões em 2005. É membro da Academia Paulista de Letras desde 1982, da Academia Brasileira de Letras desde 1985 e da Academia das Ciências de Lisboa desde 1987. Contista e romancista, uma das mais importantes figuras literárias do Brasil. Formou-se em Direito pela Faculdade ,do Largo São Francisco , da USP, e exerceu a profissão de advogada durante muitos anos. Sua carreira literária foi acolhida com entusiasmo desde o início, tanto pelo público como pela crítica, no Brasil e no exterior, onde seus livros são publicados com muito sucesso. De sua vasta bibliografia destacam-se “Ciranda de Pedra” (1954), “Verão no aquário” (1963), Histórias escolhidas (1964), O jardim selvagem (1965), Antes do baile verde (1972), As meninas (1973), Seminário dos ratos (1977), A disciplina do anmor (1980), A estrutura da bolha de sabão (1991) e A noite escura e mais eu” (1995).
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