maio 01, 2018 Air Antunes Artigos 0
ARACY BALBANI
Muita gente passou anos repetindo o que lia e assistia na grande imprensa. Reclamou que tudo ia muito mal no Brasil. Se disse cansada da corrupção. Esperneou contra a carga tributária. Bateu panela. Assegurou que não teríamos Copa nem Olimpíadas. Xingou a Dilma, o Lula,o PT, os sem-terra, os sem-teto, os médicos cubanos e os comunistas. Execrou o Bolsa Família com todas as forças. Alimentou a expectativa de um futuro melhor para si e os filhos na Flórida.
Desde que a Presidenta eleita foi removida do cargo e outro grupo assumiu o poder, muitas pessoas comuns que não perdiam nenhuma oportunidade de martelar assuntos políticos numa fila ou nas redes sociais emudeceram. Agora se limitam a divulgar fotos com a família e os bichos de estimação. Parte dessas pessoas propaga abobrinhas no Facebook e WhatsApp. A boataria com uma suposta previsão de que o inverno de 2018 seria o mais rigoroso dos últimos 100 anos no Brasil motivou até um desmentido do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
Se não perderam a voz nem o acesso à banda larga e ao celular, por que tantos bravos concidadãos pararam de tagarelar? Os maliciosos arriscam que é silêncio cívico de paneleiros arrependidos, aqueles que, no pós-Dilma, perderam o emprego, a clientela do próprio negócio ou o carrão SUV financiado e foram morar com a sogra. Outros alfinetam que é ressaca pela eleição de Trump. Ironizam que Portugal tornou-se o velho-novo eldorado para um punhado de brasileiros em debandada – com fados, com governantes socialistas, com tudo. Será?
Observo que o número de lojas sem reposição de estoque ou com placa de “Passo o ponto” aumentou na minha vizinhança desde 2016. As filas nos caixas de muitos estabelecimentos comerciais e agências bancárias que frequento diminuíram. Talvez por essas razões eu não ouça pessoas se queixarem da situação nacional. Também pode ser que elas estejam felizes com o quadro atual da política e da economia. Outra hipótese é que, de repente, tenham acabado a corrupção e a politicagem em todos os níveis de governo e também no setor privado. Quem sabe a sonegação fiscal por pessoas e empresas não foi erradicada do país? Ou a Lava Jato não motivou o aumento da eficiência de todas as investigações policiais dentro dos limites legais, permitindo esclarecer 100% dos crimes cometidos em solo pátrio? Ou, ainda, não cessaram os abomináveis trotes telefônicos à polícia e aos bombeiros? Onde encontrar dados confiáveis e análises plurais sobre esses temas?
Notícia falsa hoje recebe o nome estrangeiro pretensioso de fake news. Mas lorotas, fofocas, trotes, embustes, propagandas travestidas de notícias e barrigas jornalísticas sempre existiram no Brasil. A motivação para fazê-los varia: ignorância, incompetência, afobação, interesses inconfessáveis ou má-fé. O que nem sempre houve foi gente que assumisse a responsabilidade ética de barrar o sensacionalismo, avaliar o possível impacto das informações e se dar ao trabalho de ouvir os envolvidos antes de decidir publicá-las. Ou que, após a publicação, tivesse o cuidado de apurar a origem da mentira, conceder o direito de resposta e fazer uma retratação capaz de proteger as vidas humanas.
A notícia falsa de um inverno rigoroso pode resultar em corrida dos consumidores ao comércio para comprar cobertores, roupas pesadas e aquecedores elétricos. Sorte de alguns lojistas. Mas outras mentiras podem ter consequências dramáticas, até irreversíveis, para indivíduos, empresas ou mesmo toda a sociedade. Várias fraudes já destruíram reputações de cidadãos de bem, arruinaram famílias e economias inteiras, levaram pessoas ao adoecimento ou ao suicídio, induziram grupos a praticarem linchamentos. Desmentidos podem não bastar; não chegarem ao conhecimento de todos; acontecerem tarde demais.
Basta de mentiras, de irresponsabilidade e de parcialidade. A vida e a dignidade humanas são muito preciosas. Jamais serão medidas em termos de audiência, curtidas ou compartilhamentos. Muito menos pelo preço de capa, de assinatura, do minuto no intervalo comercial ou das ações negociadas na bolsa de valores. Uma sociedade que não compreende isso corre o sério risco de despenhar-se, como se diz lá em Portugal.
Aracy Balbany, médica e articulista do Jornal GGN
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