jul 16, 2014 Air Antunes EDUCAÇÃO 0
“Todo mundo gosta de escrever. Quando entro numa livraria compusivelmente compro livro, muito mais do que posso gastar. Já li rapidamente uns dois livros na própria livraria. Mas hoje se escreve muito. Não para acompanhar. Nos jornais há páginas inteiras sobre autores estrangeiros que não conhecemos, dá complexo de inferioridade. Do jeito que o jornal publica você teria a impressão de que é o único idiota do planeta. Eu me sinto um verme, uma ameba. Aí pego o jornal na semana e digo: “Quem será que passar o trator em cima de mim, hoje?
Quanto aos autores nacionais, quem aqui leu o Deonísio ? (Deonísio da Silva, seu companheiro de palestra). Estão perdendo um enorme escritor. Falo isso com o coração aberto. Agora, conseguir uma nota nos jornais….Quantos escritores têm de fazer peregrinação, via-sacra, ir às redações! A divulgação da editora manda release, telefona. É um horror.
Existem muitos assuntos abertos aos escritores. Mas o primeiro passo é a pesquisa. A gente precisa ter tempo e dinheiro. Não pode sair com um sanduíche do MacDonald´s e ir pesquisar em outro estado. Um caso curioso se passou comigo: há muitos anos eu tinha um assunto na cabeça, fazer uma história sobre cachorros. Eu vinha acompanhando a vida de cachorro no Brasil, que melhorou muito nestes 10 ou 15 anos. O cachorro gosta de mordomias que muita gente não tem. Minha idéia, que era anterior à grande onda de sequestros, era escrever uma história sobre um detetive especializado em descobrir cachorros sequestrados. Mas o problema era a pesquisa. Comecei a pesquisar por conta própria, no Serviço de Zoonose do Estado, que pega os cachorros de rua. Fiquei sabendo tudo o que se passa com esses animais. Eles têm cinco dias de prazo para que o dono apareça, senão são sacrificados ou vendidos. Já tinha até um nome para o livro: seria ´O Quinto Dia´. Mas eu tinha de aprofundar a pesquisa nos hotéis para cachorros, nos cemitérios de cães. E não tive condições. Outro dia, lendo o jornal, vi um comentário sobre um cineasta americano que fez um filme justamente sobre um detetive que procurava os ladrões de cachorros. As idéias estão no ar. Se a gente não escreve logo, alguém rouba. A pergunta é: ´Ler, para que? Bom, existe o livro técnico, de metalurgia, de química, de economia, etc. Mas se você pega um conto, um conto de mnarca, você descobre a palavra e descobre o raciocínio. Sem palavra, ninguém pensa. E não adianta televisão, vídeo, rádio. Porque livro é livro. Livro, você leva para sua cabeceira. Quantos quiser. Empilha.
Rachel de Queiroz resolveu escrever Memorial de Maria Moura com mais de 80 anos- um livro que não dá para se ler em dez dias. A gente precisa parar para respirar. A cena em que o padre assassina o marido da amante é antológica. A Globo fez uma senhora minissérie. Mas por melhor que tenha sido , não chegou nem na sola do sapato do último capataz de Maria Moura. A Dona Rachel inventou a Maria Moura na cabeça. Essa é a magia do livro. Quando o escritor Humberto de Campos morreu, o Rio de Janeiro parou. Foi um enterro apoteótico , ´global´. Porque ele era lido por milhares de pessoas. Hoje, muitas obras excelentes ficam sob uma tonelada de cinzas. Às vezes só descobrem um autor muito bom depois de sua morte. Então editam com um bom papel, uma boa capa. Mas às vezes o autor fica sufocado e as pessoas nem o descobrem. O programa “O Escritor na Cidade”, da Secretaria Estadual da Educação, parece que vai ser retomado. O escritor sai batendo perna. No ano passado fui visitar cidades pequenas incríveis, São João do Pau D´Alho, por exemplo. O escritor chega, mas o livro não chega lá. As repartições públicas funcionam entre quatro paredes e um teto, ficam um pouco fora da realidade. Quando vai um escritor a uma cidade, vão buscá-lo de carro, espalham faixas na cidade. A gente fica ali meio vexado. Depois vem o hotel com aquele café da manhã global. Aí tem almoço, com companhia. É horrível. Todo mundo está olhando para a gente. Mas, e o livro? Tem tudo menos livro. Mas por que o livro não chega ? Porque as editoras não mandam livros em consignação. O livro é perecível e pesa, por mais que seja fino. As editoras não pagam frete para mandar livros para o interior. Se o livro voltar com uma orelha ninguém compra, vai parar no sebo. Então, é melhor suspender o café da manhã global, as faixas, mas comprar os livros. Distribuam melhor os livros, façam sorteios de livros.
O autor só vale a pena de ser ouvido se puder ser checado, seu texto lido. É preciso demistificar o trabalho do escritor. Todo mundo pode escrever. Escrever é comunicar. Ler é conversar. O livro é uma conversa. Ela é a melhor ferramenta do homem para se aproximar dos outros. Porque nós, escritores, não podemos enganar vocês, conversando. Podemos enganar fazendo contos”.
Uma vez, numa praça
Para chegar à biblioteca de certos bairros periféricos
de São Paulo leva-se às vezes o mesmo tempo que se
gasta para ir a uma cidade do interior. São Paulo cresceu,
estufou, derramouse pelo que antes eram arrebaldes.
Eu, que nasci aqui, estranho. Quando pequeno
passei férias em sítios bucólicos que hoje
estão transformados em aglomerados urbanos. Uma de minhas
surpresas e espántos, diria inesquecíveis, foi quando
aceitei o convite para ir visitar um ônibus-biblioteca da
prefeitura, estacionado em São Mateus. Eu nunca
havia entrado num ônibus-biblioteca, mas já estivera
em São Mateus. Portanto, muito tempo atrás. E agora
eu via São Mateus mudando da água para a cerveja. Era
uma outra cidade dentro da cidade. Visitei o ônibus-
biblioteca, que, cá para nós, não era lá essas coisas.
Os livros, não muitos, estavam mais que manuseados.
A maioria deles estava na hora de se aposentar. Porém
notei um orgulho comovente nos olhos dos funcionários
que cuidavam do veículo e do seu limitado acervo,
que circulavam pore lugares distantes, onde os estudantes,
era de supor, normalmente não teriam condições
de acesso fácil à leitura.
Imaginei que iria bater um papo com frequentadores do ônibus,
e me enganei. Eu iria ter de conversar na pracinha, que, aliás, era uma
praça enorme, onde o ônibus-biblioteca estava estacionado. Num coreto!
O coreto da praça. Já vi banda de música em coreto; já vi
conjunto de rock em coreto; já vi comício político em
coreto. Mas palestra sobre livros, em coreto, para mim
era novidade. É uima baita surpresa. Até porque se havia lá oito pessoas
era muito. Mas guerra é guerra, quem sai na chuva deve usar boné.
Sentei a uma mesinha dessas de botequim, de lata, com reclame
da Antárctica.Em volta, as oito pessoas aboletadas mais ou menos desconfortavelmente
em mesinhas iguais à minha. Fui falando, fui falando, procurando quebrar
o gelo, Pensei: na hora em que o primeiro ouvinte bocejar,
caio fora. Quinze minutos depois havia umas vinte pessoas.
E depois umas trinta. E as pessoas começaram a fazer perguntas
sobre livros, sobre essas coisas que parecem não te
importância no dia-a-dia. Mas têm. E no meio do público havia um senhor,
e ele estava meio chumbado, devia ter tomado umas e outras,
e ele começou a dar palpites. Alguém fez: chiiiiu! como a mandar
o homem calar o bico para não atrapalhar. Mas o homem não estava
atrapalhando. Ele estava apenas querendo falar. E então ele disse
uma coisa muito séria: ele disse que estava desempregado, mas
que a filha dele estudava e gostava de ler. Depois disso
não falou mais nada, ficou quieto, murchou, e eu dei papo por encerrado. E essa foi a primeira vez que eu subi num coreto de praça para falar sobre livros.
E depois disso não voltei mais até hoje. Mas bastou
aquela vez para valer a pena.
Lourenço Diaféria
“A grande tragédia da nossa realidade é a falta de conversa. Ela é a melhor ferramenta do homem para se aproximar dos outros. Porque nós, escritores, não podemos enganar vocês, conversando. Podemos enganar fazendo contos”
A palestra de Diaféria foi realizada na Biblioteca Dinah Silveira de Queiroz a 6 de abril de 1995, também na Biblioteca Mario de Andrade no dia 28 de abril de 1995.
Lourenço Carlos Diaferia nasceu em São Paulo em 28 de agosto de 1933,contista, cronista e jornalista.Sua carreira jornalística começou em 1956 na Folha da Manhã, atual Folha de S.Paulo. Como cronista o início foi mais tardio, em 1964, quando escreveu seu primeiro texto assinado. Permaneceu no periódico paulista até 1977, quando foi preso pelo regime militar devido ao conteúdo da crônica “Herói Morto”, considerada ofensiva às Forças Armadas. A crônica comentava o heroísmo do sargento Sílvio Delmar Hollenbach, que pulou em um poço de ariranhas no zoológico de Brasília para salvar um menino. A criança se salvou, mas o militar morreu, vencido pela voracidade dos animais. A crônica também citava o duque de Caxias, o patrono do Exército, lembrando o estado de abandono de sua estátua no centro da capital de São Paulo, próximo à Estação da Luz. Diaféria contratou o criminalista Leonardo Frankenthal e foi considerado inocente em 1980. Durante algumas semanas, a Folha deixou em branco o espaço destinado ao colunista, em repúdio à sua prisão. Depois da Folha, levou suas crônicas para o Jornal da Tarde, o Diário Popular e o Diário do Grande ABC, além de quatro emissoras de rádio e a Rede Globo. Católico, escreveu “A Caminhada da Luz”, livro sobre dom Paulo Evaristo Arns, a quem admirava. Outra “religião” era o futebol: muitas de suas crônicas falavam desse esporte — e de seu time, o Corinthians. Desde o início de 2008 Diaféria enfrentava problemas no coração, até que um infarto o levou, aos 75 anos no dia 16 de setembro daquele ano.
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