fev 16, 2015 Air Antunes Ilustrada 6
O site, em sua empreitada cultural, com certeza é o maior acervo histórico de Angatuba postado na internet, e com este mérito segue em frente publicando obras artísticas, literárias, de angatubenses nativos ou não que marcaram uma época como o foi Renato de Carvalho Ribeiro, o saudoso “Dr. Renato”, assim carinhosamente conhecido. Dele, o site apresenta em capítulos seu livro “Reminiscências” no qual detalha vários episódios de sua vida. De acordo o apresenta, a contracapa do livro “….nasceu em Salvador, estado da Bahia, em 18 de maio de 1911, onde fez seus estudos primários e secundários, ingressando em seguida, na tradicional Escola de Medicina da Bahia. Formou-se em 1936, ano em que também se casou com Áurea Lemos Ribeiro. Em busca de, trabalho, fixa-se com a família em São Paulo, Capital, servindo como oficial da reserva do Exército, em Itapetininga. Trabalhou por quatro anos na cidade de Porangaba, até que vem para Angatuba, desembarcando da jardineira, com a esposa e os dois filhos pequenos, César e Lúcia. É nomeado médico do Posto de Puericultura, passando depois a médico-chefe do Centro de Saúde. Participou da fundação da Santa Casa de Angatuba. Aqui nascem suas duas outras filhas, Cremilda e Damáris, além da filha adotiva , Soraya. Exerceu sua nobre profissão com devoção e amor. Nas horas vagas escrevia romances, contos e poesia. Desenhava, pintava quadros, fazia caricaturas, tirava fotografias artísticas e fez alguns filmes. Amava a natureza, a música e as crianças. Faleceu no dia 28 de junho de 2004, cercado pela família. No seu epitáfio, vêm a calhar as lembranças: pintor da natureza, poeta sonhador, amante das estrelas, da música. Médico dos pobres!”
-O senhor é o doutor ?
-Sim, sou eu. –respondi sorrindo – Estou chegando agora.
-Já tem um freguês pro sinhô….
-Sim, mas acabo de chegar…
-É a Toinha. –disse o moço dirigindo-se agora a meu pai –Mandou dizer que logo que o doutor chegasse, o senhor levasse ele logo na casa dela porque ela está sofrendo muito, quase morreu esta noite.
-É a doente de quem lhe falei. –explicou meu pai- Vai ser sua primeira cliente.
A Estação estava cheia de gente que embarcava, desembarcava ou simplesmente viera ver o trem. Segurei as duas malas. Ali perto estacionava o bondinho, que era um trole puxado por uma parelha de burros, esperando passageiros. Todos acomodados, a molecada subindo, descendo , gritanto , assobiando, lá fomos galgando vagarosamente a leve inclinação da rua que comunicava a Estação com o centro da cidade. O condutor não poupava as relhadas nos burros e aos gritos: “Vam´embora”, “Vamo, sinhô!” E lá iam os pobres animais arrastando o pesado veículo cheio de gente. Desci no Largo da Matriz e nos dirigimos ao Hotel, onde Formosino, o dono, já nos esperava. Fui recebido por dona Santa, a mulher do hoteleiro, sentada numa cadeira de balanço, gorda, que mal se movia, entrevada por um reumatismo crônico.
-Que bom, que o senhor chegou! – disse-me ela estendendo-me a mão que , de tão macia, parecia ser forrada de seda. –Quem sabe, um doutor novo deve ter remédio novo pra curar a gente!
Antes que ela fosse fazendo uma consulta, meu pai me apressou, devíamos ir logo ver a Toinha. E não tardei a ser conduzido para lá. A casa estava cheia de gente. Parentes, amigos, principalmente amigas, vizinhas…Toinha era de meia idade, amulatada, obesa, um buço quase a esconder-lhe o lábio superior. Recebeu-me com um riso simpático. Apesar da aparência feliz, no fundo, uma criatura infeliz, ela me declarou logo após as apresentações.
-Estava esperando e tenho fé no novo doutorzinho que seu Ribeiro, seu pai, disse que ia trazer para cá, -disse ela com um riso simpático. –Graças a Deus que o senhor chegou e sei que vai me curar logo!
As amigas e parentes começaram a falar todas ao mesmo tempo, afirmando que ela era uma pessoa muito querida de todo mundo na cidade.
Conversei ligeiramente com ela, depois pedi para examiná-la no quarto, para onde ela se dirigiu lentamente , com as pernas meio abertas. Auxiliado por duas mulheres fiz o exame ginecológico externo e sorri comigo mesmo ao ver o caso. Era o que vira na última visita que fizera, despedindo-me do Hospital que frequentava no meu curso, o Hospital Santa Isabel, em Salvador.
Lembrei-me bem do mestre nos mostrando caso idêntico ao que via naquele momento. Era um tumor das partes genitais da mulher, do volume de um limão grande, ulcerado, coberto de secreção purulenta. Chama-se “,olluscu pendulum”. Era pediculado, isto é, era pendente numa pequena parte, dolorosíssimo, que fazia a doente sofrer há muitos anos, usando toda espécie de pomadas anestésicas.
O decano dos médicos do lugar, Lídio Paraíba, ultimamente lhe prescrevia pomadas anestésicas à base de cocaína, o que lhe aliviava as dores por algumas horas. A pobre mulher passava horas abaixada sobre uma bacia com água gelada, a fim de melhorar o sofrimento.
Após os exames, chamei os parentes e tive com eles uma pequena conferência. Falei em cirurgia e a reação deles foi um desencontro de opiniões. A que dominava era que a paciente era muito idosa para ser operada, coisa que até os dias de hoje os médicos ouvem muito. A doente, conformada com qualquer tratamento que a livrasse das dores, os amigos a darem palpites sobre a doença, que operação é a melhor coisa que existe, ou que ela não aguentaria a operação e iria morrer na mesa, assim por diante.
Ouvi tudo, mas não quis comentar nada. Quando todos acabaram de falar, apenas marquei a cirurgia para daí a alguns dias e prescrevi analgésicos e outros cuidados para o pré-operatório.
Voltei para o hotel para tomar banho e meu pai, temeroso com a tal cirurgia, confidenciou-me as suas dúvidas:
-Veja lá…Se você fracassar nessa cirurgia, logo de chegada aqui….E se a mulher morrer? Um fracasso desse com o primeiro cliente, significa que pode arrumar novamente suas malas e procurar outra cidade para clinicar.
Tranquilizei o velho, disse-lhe que sabia o que iria fazer, que a cirurgia por si não apresentaria nenhum perigo.
-Ela é uma mulher muito popular e querida aqui, por todo mundo. A população já sabe que logo que você chegasse iria cuidar dela.
-Deixe comigo. É uma operação banal.
Esperarei até chegarem os móveis e equipamento do consultório que já estavam comprados ,e no mesmo dia, enviei a mesa ginecológica e os instrumentos necessários à casa da cliente.
O ambiente era de suspensa e expectativa, várias velas acesas a santa Brígida, padroeira da cidade e a outros santos, inclusive preces para que o padre Cícero guiasse minhas mãos. Os amigos, parentes e vizinhos cochichavam enquanto eu esterelizava os “ferros” para o grande acontecimento. Vários dos presentes se ofereceram para me auxiliar nos que pudessem . Escolhi uma moça que apareceu mais desembaraçada e que tinha alguma prática de enfermagem doméstica. Sob minha orientação, foi tudo preparado dentro das possibilidades do campo operatório improvisado e, sob o olhar expectante de algumas mulheres mais corajosas, comecei o ato operatório que, entre a anestesia local e o último ponto da sutura, demorou talvez uns dez minutos.
A simplicidade da cirurgia foi tão rápida que deixou a todos admirados. A pedido de uma das filhas da paciente, rodeado de outras mulheres curiosas e entusiasmadas com meu trabalho, expliquei: anestesia local. Pinçamento do pedículo com duas pinças, incisão entre as pinças, com a retirada do tumor.
Retirada da segunda pinça, hemostasia de veias e uma arteríola que esguichou um pouco, deixando muitos corações ali baterem mais rápido e fechamento da incisão. Pronto.
O exame anátomo-patológico não era fácil de se fazer naqueles tempos. O material teria que ir para o Rio de Janeiro e só teria o resultado daí a quanto tempo só Deus sabe. Por isso dispensei-o, com esperança de que o tumor, pela sua história e evolução seria de natureza benigna, do que tive a prova com o acompanhamento pós-operatório.
Voltando para o hotel, recebi o único comentário desfavorável do meu primeiro trabalho em Pesqueira. Partiu de meu pai:
-Muito bem, seu doutor, houve uma grande falha de sua parte. –não me deu tempo de perguntar qual foi – Você bancou um bobo muito grande, fazendo a cirurgia tão rapidamente, como uma coisa sem muita importância, demorando apenas dez minutos. Era caso de você fazer uma mis-em-scène especial, demorar bastante, cortar mais, deixar correr um pouco de sangue…
Enfim, provocar expectativa a fim de valorizar seu trabalho!
-Bem, -respondi –Foi a primeira vez…eu não sabia que precisava…
-Pois precisava, sim. O povo só sabe dar importância a um profissional quando vê alguma coisa para deixá-lo admirado, aprenda esta.
Dei por aprendida a lição…Mas, apesar da falta da mis-em-scène, a cirurgia foi a melhor propaganda para o doutorzinho recém-chegado à cidade, que “passou a perna em vários médicos antigos do lugar”- diziam , pois já haviam desenganado a Toinha, um deles dando apenas um mês de vida…Nas conversas pelas farmácias , botequins e rodas de amigos, houve assunto para muito tempo.
A casa de “Toinha Tampa” como era conhecida, vivia agora mais cheia ainda, todos a lhe perguntar como ia passando e ela sempre respondia, como me disse depois:
-Foi um milagre, gente. Santa Brígida ou o padre Cícero trouxe aqui este bendito doutor, para me deixar boa! Não sinto mais nenhuma dor, acabou tudo!
Era era, entre outras coisas, intermediária muito procurada, para brigas entre casais, confidente de casais que se diziam infelizes, intermediária entre descasados ou viúvos que desejavam encher sua solidão com novos amores e, principalmente, estes sempre encontravam junto a ela com seus bons ofícios, uma soluçãozinha para seus problemas afetivos.
Agora ela tinha mais tempo para servir ao povo, já que seus sofrimentos desapareceram com a remoção dos “molluscus”.
Obedecendo a conselho de meu pai, fui visitar no dia seguinte o mais velho farmacêutico de Pesqueira e talvez de toda a região, Manoel Cristóvão dos Santos, “seu” Manezinho. Havia na cidade, se não me engano, quatro farmácias, três bem aparelhadas, com balcão, vitrinas, mostruários modernos e perfumarias; só na Farmácia Santos, de Manoel Cristóvão, era simples e modesta, nos padrões antigos e tradicionais; onde não faltavam jarrões de vidro cheios d´água colorida de azul e vermelho e cheiro de remédio pairando no ar, uma grade de madeira à guisa de balcão.
Seu Manezinho não estava no momento, tinha ido visitar um doente, a chamado. E, enquanto esperava , fiquei conhecendo seu filho mais velho, José Cristóvão, que trabalhava na farmácia e que viria a ser um dedicado amigo meu. Na mesma ocasião, fui apresentado a um vizinho da farmácia, o Abílio , que tinha ali em frente, uma moenda de caldo de cana e que, de chegada, foi logo tecendo elogios à minha pessoa, como médico jovem que ia se aventurar numa cidade como Pesqueira e já sabia que ia curar totalmente sua amiga Toinha Tampa que sofria há tanto tempo , sem que os médicos locais conseguissem!
Manoel Cristóvão chegou e, como já soubesse que eu o esperava, entrou na farmácia com a mão estendida.
-Oh, seu doutor! – foi dizendo- Precisava mesmo conhecê-lo, a sua fama já está correndo a cidade! Está gostando de Pesqueira?
Respondi-lhe ao cumprimento e fiz um rápido e favorável exame do homem que tinha diante de mim. aparentando um pouco mais cinquenta anos, baixote, magro, tinha feições levemente enrugadas, óculos quase na ponta do nariz, chapéu na cabeça, o qual só tirava para dormir, como soube depois. Havia até uma fotografia de família que me foi mostrada, com ele junto da mulher e filhos, em pose clássica, carregando o caçula…e de chapéu na cabeça.
-Estava curioso também para conhecê-lo, seu Manoel- respondi. –Estou sabendo que é o farmacêutico mais antigo de Pesqueira.
-Sim, – ele retrucou- talvez o mais velho e mais antigo de todo o agreste! O terno que vestia era surrado e uma corrente de ouro lhe atravessava o colete, de onde pendia uma libra esterlina. Não mão, carregava uma velha maleta escura, onde levava suas medicações de urgência, como soube depois. Seringas, álcool, algodão, comprimidos, e- José Cristóvão me informou – cascas de amendoim, de cebola, pedaços de barbante, caco de vidro de ampolas. Levou-me ao laboratório e lá ficamos a conversar; um dos motivos da conversa foi naturalmente, a cirurgia da Toinha, tendo eu, de imediato simpatizado muito com o velho profissional. Procurou saber de minha vida e quais os planos que tinha para o futuro.
-O senhor, que é moço ainda, tenha esperanças que vai ganhar muito dinheiro aqui, ainda mais sendo operador. Pesqueira é lugar de gente doente, o senhor vai ver.
Zé Cristóvão mostrou-me toda a farmácia e os preparados que manipulava com as fórmulas da Farmacopeia Brasileira, apresentando-os em embalagens semelhantes aos produtos farmacêutcos industriais. Eram xaropes, tônicos, depurativos, pomadas e um que receitei muitas vezes a pedido de Zé Cristóvão, o Elixir de Coca e Guaraná, indicado como tônico e reconstituinte. De repente chamaram do balcão.
-Ô seu Manezinho!
Era uma consulta e eu me aproximei para observar.
-Óia, seu Manezinho. Mecê tem um remédio bem bão pra minha mulé tomá? Ela tem uma catinga de boca da peste, seu! Não gosto nem de chegar perto dela, óia, nóia dorme até separado. Ô fedentina da gota, sinhô!
Manoel Cristóvão sorriu para mim. Abriu um armário, de lá tirou um frasco e dele virou na mão um punhado de pastilhas brancas. Eram pastilhas de hortelã fabricadas pelo Laboratório Silva Araújo. Enrolou num pedaço de jornal, entregou o pequeno embrulho ao freges, prescrevendo:
-Dê pra ela chupar uma, três vezes por dia!
E disse o preço. Quando o homem ia saindo ainda recomendou:
-Olha, Bastião, não se esqueça de dar a ela duas vez na hora de deitar, hein?
Assim você pode chegar bem pertinho dela!
E sorriu, maldoso, piscando o olho para mim.
Como se soubesse que eu andava procurando uma sala para abrir o consultório, o bom homem me ofereceu logo em sua casa um local onde poderia instalar o consultório até que encontrasse lugar melhor. Levou-me à sua residência e me apresentou a dona Carlinda, sua esposa, uma senhora sorridente e amável. Tivera dez filhos, mas apenas uma parte deles estava ali. Mostrou-me um quarto vago que dava para a rua. Ali tive o consultório até o dia em que mudei de Pesqueira, secretariado por Lídio, um dos filhos do velho farmacêutico.
Tornamo-nos amigos e ele, muitas vezes, me acompanhou no atendimento de doentes no seu fordeco, frequentando as vilas do município, Genipapo, Venturosa, Sanharó, Cimbres, em dias de feira, onde, feio previamente o aviso da minha chegada, sempre havia clientes me esperando. Aliás, mais valia o passeio que dava a esses lugares pitorescos, conhecendo pessoas e coisas diferentes do que o dinheiro que recebia as consultas.
Nas horas vagas, estava sempre na farmácia conversando com Zé Cristóvão e seu pai, Zé, talvez beirando os quarenta, era solteirão e não pretendida se casar enquanto não encontrasse rica herdeira disponível. Religioso ao extremo, católico praticante, começou desde logo a me convencer que devia aproximar-me da igreja, já que eu apenas tinha feito na infância a primeira comunhão e, em Pesqueira, deveria fazer a segunda.
Numa dessas ocasiões, o papo tomou o rumo sobre o vício de fumar, puxada por Abílio, o dono do caldo de cana que havia em frente.
-Eu nunca fumei.- respondi à pergunta de Abílio. –Não sei o gosto que tem o cigarro, nem o prazer que alguém possa ter em puxar e tragar a fumaça.
-Pois eu já fumei e muito. Desde criança comecei a fumar, mas deixei o vício faz já muitos anos.
-Sorte sua, seu Manoel! –comentei –E contei a piada de Mark Twain, que um dia afirmou.: “Dizem que deixar de fumar é uma das coisas mais difíceis que existe. Eu não acho. A prova disso é que já deixei de fumar uma porção de vezes!”
Manoel Cristóvão era o tipo do homem honesto, de palavra e, sobretudo, durão. Confirmou meu julgamento quando me contou naquele dia um episódio que acontecera com ele, confirmado por Abílio, que estava presente.
-ouça, doutor, um causo que vou lhe contar sobre esse negócio de fumar ou deixar de fumar. Há muitos, nem sei mesmo quantos, saí daqui da farmácia para ir comprar cigarro numa venda que havia antigamente ali defronte.
Ajeitou o chapéu na cabeça, os óculos sobre o nariz e começou a narrativa com a naturalidade que o caracterizava.
Entrou na venda, pediu cigarro e fósforos, pagou, recolheu o troco, quando dele se aproximou um homem que ali estava encostado no balcão, desconhecido de todos. Usava um traje gaúcho, bombachas, botas curtas, lenço vistoso no pescoço, chapelão de abas recaídas e cinta larga na cintura. Um tipo que, se via logo, era um estranho na cidade. O homem sorriu para o velho farmacêutico e levou aos lábios o cigarro aceso que tinha na mão. Sorria para ele e via-se que estava querendo puxar conversa.
-Eh vício desgraçado, esse de fumar , não é? –o desconhecido comentou, no gesto de soltar a fumaça.
Manoel Cristóvão concordou:
-É mesmo…cigarro é uma praga na vida da gente.
-E é coisa que faz mal ao corpo e ao bolso da gente, não é?
-Émesmo! –anuiu Manoel Cristóvão- Um vício desgraçado, como o senhor disse.
-Eu que o diga, meu amigo! –lamentou-se o desconhecido olhando a brasa do cigarro – Não posso ficar nem um dia sem fumar. E fumo um maço por dia. E o pior, companheiro, é que não existe nenhum homem que deixe de fumar.
-Manoel Cristóvão olhou-o com curiosidade.
-Eu sempre digo – continuou o tal – que está para nascer o homem que tenha vergonha na cara e diga que vai deixar de fumar e deixe mesmo!
-Olha, meu senhor….-ponderou Manoel Cristóvão guardando o maço no bolso – O senhor não deve falar assim, de uma maneira geral….
-Por que não ? – perguntou o outro sorrindo – Já sou um homem maduro, conheço a vida! E conheço também os homens! Estou vindo de Goiás, conduzindo com mais dez peões cerca de mil cabeças de gado e tenho conhecido meio mundo nas minhas viagens, amigo! Nunca vi homem deixar de fumar!
-É…´-interveio Manoel Cristóvão – Mas nem todos os homens são iguais.
-Isso é engano seu, meu amigo! –replicou o boiadeiro – Todos os homens são iguais.
Nesse ponto do diálogo , Manoel Cristóvão fechou a cara.
-Pois eu lhe digo, meu senhor….Não diga isso…
-Não digo ? E por que não ? Nesse ponto, nenhum homem tem palavra! Neste negócio de deixar de fumar, todos os homens são um sem-vergonha! A começar por mim! Nenhum sustenta a palavra! “Quantas vezes eu já disse que ia deixar de fumar? Quantas?
Manoel Cristóvão tirou os óculos e limpou-os nervosamente com a manga do paletó. Encarou o desconhecido que ria diante dele.
-Olhe aqui, amigo….-falou gravemente – Existem homens com vergonha na cara e se o senhor não conhece, eu conheço. Homens que, se disserem que vão deixar de fumar, nunca mais fumam mesmo !
O senhor me adiscurpe de eu falar assim, -o gaúcho deixou um momento de rir –mas eu acredito. O senhor, por exemplo, já não disse alguma vez que ia deixar de fumar?
Não- gritou o outro – Nunca disse! Mas, se algum dia disser isso, nunca mais fumo!
O pior foi a gargalhada que o boiadeiro soltou ao ouvir tais palavras.
-Só vendo, para acreditar.;….
Aí o velho farmacêutico se queimou.
-Olha, moço! –exclamou alterado- o senhor me conhece?
-Não –respondeu o outro.
-Pois eu me chamo Manoel Cristóvão dos Santos! Não sou sem-vergonha! Sou um homem de palavra! Sou farmacêutico e aquela farmácia ali defronte é minha!
Num gesto brusco tirou o maço e seu fósforo! Devolva meu dinheiro! De hoje em diante…não fumo mais!
-Taqui, Joaquim, seu cigarro e seu fósforo! Devolva meu dinheiro! De hoje em diante…não fumo mais!
E ante o espasmo do forasteiro:
-Ali , na minha farmácia o senhor me encontra todo o dia! Se voltar a Pesqueira, em qualquer tempo, me procure! Se eu não tive força para sustentar o que digo agora, se eu não deixei de fumar, reconhecerei que sou um sem-vergonha, como tantos homens que o senhor conhece e entrego-lhe minha cara para receber uma bofetada! Lembre-se! Manoel Cristóvão dos Santos! Passe bem!
E voltou à farmácia, fulo de raiva.
Quando o velho farmacêutico acabou de contar o caso, achei que devia perguntar:
-E o homem algum tempo voltou a Pesqueira?
-Não. – ele respondeu- Nunca mais apareceu por aqui,
Então fiz-lhe a pergunta que foi verdadeira gafe:
-E o senhor…não fumou mesmo….Nunca mais?
-Claro que não! –respondeu ele.
E olhou-me meio atravessado.
Embora já conhecesse o pernambucano por ter vindo várias vezes passar as feras com meus pais em Recife, na época do Carnaval, quando então “caía na onda” e fazia o “passo” do frevo, foi para mim uma experiência nova conhecer o pernambucano do interior, o “matuto” simplório, com seu linguajar cantado e expressões linguísticas inteiramente novas para mim.
Nunca saíra das Capitais e por isso mesmo comecei a sentir uma natural curiosidade diante de fatos que representavam novidade na minha vida de jovem que fora educado e morara toda a vida no asfalto. Os tipos, os costumes, o linguajar, tudo era diferente do que eu conhecia. Dona Santa, a mulher de Formosino, o dono do hotel, sempre entrevada pelo reumatismo, quase sem poder andar, resmungava a cada instante contra o que chamava de matutos ignorantes daquele lugar.
-Nem sabem se vestir! –dizia-me mostrando as moças nos dias de feira que, ou vinham fazer compras ou simplesmente passear na feira que se realizava semanalmente na praça onde estava o hotel. Elas se vestiam quase invariavelmente de cor-de-rosa, sapatos pretos e meias brancas. Não dispensavam também algum colar de bolas e miçangas coloridas compradas nas barracas da feira.
-Todas uniformizadas! –comentava ela, rindo e me mostrando as moças que conversavam em grupos ou passeavam na calçada do hotel.
Pesqueira era naquela época uma cidade de porte regular, onde toda a população era católica, com raríssimas exceções. Uma destas era Formosino. Era espírita (espita, como ele pronunciava). O povo era intolerante com as seitas protestantes. Contavam que um núcleo protestante de uma cidade vizinha esteve procurando fundar na cidade uma igreja. Ninguém quis alugar ou vender uma casa ou sala, Ninguém cedia, mas, a peso de ouro conseguiram uma salinha perto do centro. Apesar das pregações do vigário no púlpito, secundadas pela palavra intolerante do bispo local, os “crentes”, a quem a população chamava de “bodes”, iniciaram seus trabalhos religiosos.
Certa noite, reuniu-se um grupo de pessoas e começaram a apedrejar o reduto dos “bodes” que, no momento entoavam seus hinos em altos gritos e suas orações, numa algaravia de exclamações e gritaria. De nada adiantavam os protestos do pastor pedindo providências à polícia que, por sua vez, fez ouvidos moucos.
Quando a caravana de crentes chegava à cidade, alguém avisava o padre e então os sinos da igreja começavam a badalar horas seguidas, até que os indesejáveis fiéis deixassem de “bodejar” e fossem embora, muitas vezes seguidos por moleques que os vaiavam e apedrejavam. Um deles, pastor da igreja, apareceu e foi reconhecido na feira certo dia, sendo agredido sem motivo; saiu correndo dos agressores, para livrar-se das pedradas deixando seu chapei “palheta” todo amassado, como troféu da vitória nas mãos de seus agressores. Ouvi de Zé Cristóvão a seguinte história que, ao lado da incredibilidade que apresenta, tem seu lado pitoresco. Mas que de fato, aconteceu.
No começo das hostilidades, quando era acesa a “guerra religiosa” como diziam, apareceu na feira um dos protestantes vendendo, por alguns tostões e oferecendo de graça a quem não queria comprar, umas pequenas bíblias e extratos bíblicos, tudo muito bem impresso e colorido, alguns com apresentação primorosa, coisa que não era de estranhar, pois aquele matéria vinha gratuitamente para as igrejas fornecidas pelas poderosas organizações protestantes americanas. O homem, corajosamente, arrumou seus livrinhos e impressos sobre um caixote no meio da feira, pagou o imposto da prefeitura e começou a pregar em altas vozes, oferecendo sua mercadoria. O padre soube logo disso e se dirigiu ao bispo. Uma testemunha do fato- e houve muitas- me contou. O bispo interpelou o padre:
-E o senhor? Que providências tomou para evitar isso ?
-Nada! – respondeu o pároco. –Mandei que fosse embora.
-Sua Excelência dirigiu-se com o padre, seguido de grande número de acompanhantes, à feira e parou diante do pastor vendedor de panfletos.
-O que faz o senhor aqui ? –perguntou-lhe o bispo.
O homem, apesar da hostilidade de que se via cercado, respondeu que vendia ou oferecia livros com a palavra de Deus.
-Já mandei que ele se retirasse. –informou o padre – O povo aqui é católico e não precisa de protestantes para ter a palavra de Deus !
-Como? –explodiu o bispo – Olha, padre, devia logo ter feito assim!
Sua Excelência avançou para o homem, agarrou seus impressos e começou a rasgá-los. O povo, que engrossara em volta, começou também a rasgar os papéis coloridos e jogá-los para o alto, imitando Sua Excelência, aos gritos de “Fora, bode!”
O homem achou melhor fugir dali e saiu bem depressa porque já começavam os empurrões, os tabefes, os socos nas costas..
Durante muito tempo diverti-me estudando e apreciando os curiosos tipos que circulavam na feira , à minha volta. Os homens, oitenta por cento se chamavam Severino e tinha o apelido de Bio. Alguém me explicou:
-É promessa que as mães ou os padrinhos fazem a São Severino do Ramo. As mães, para terem bom parto. Os padrinhos…bem, de certo é porque gostam do nome, né?
Na feira havia de tudo. Tinha prazer em correr toda ela, olhando, observando tudo. Carne seca dependurada, às vezes coberta de moscas, a “carne de sol”, saborosíssima, aliás. O charque do Rio Grande, em grandes mantas, dependuradas em varais e vendido em tiras cortadas no momento, chamada “carne do Ceará”. A farinha de mandioca, a saborosa “rapadura puxa”, os queijos de “coalho”, requeijões, queijo de leite de cabra, doces caseiros, uma infinidade de guloseimas. Para matar a sede, homens, mulheres e meninos vendiam nas bancas ou mesmo na mão, garrafas e jarras com refrescos, os mais variados: caldo de cana, beberagens amarelas, verdes, vermelhas, feitas sabe Deus com que tintas e essências…Tudo servido em copos mal lavados, tudo rodeado de moscas, tudo morno sob o sol esturricante. As lojas ambulantes onde se podia comprar de tudo, desde roupas novas ou usadas, até quinquilharias de latão, anéis com pedras de vidro de todas as cores, sapatos, perfumes “franceses”…
Uma coisa observei e achava graça a princípio, era a maneira dos homens se cumprimentarem. Apertavam-se as mãos, depois tocavam com a mão direita o ombro um do outro, como se fossem abraçar e novamente trocavam o aperto de mão. Isso invariavelmente. E eu para não ofender a “etiqueta”, com muito gosto, adotei o hábito, quando o matuto simples me cumprimentava.
Muitas vezes para conversar, os dois procuravam uma parede e aí, junto a ela, se abaixavam e ficavam conversando animadamente. Vários pares de homens ficavam naquela postura trocando ideias sobre a chuva que sempre tardava, sobre a família, ou simplesmente descansando, olhando, assuntando, olhando o céu, “tomando massaranduba do tempo”.
As frutas da época me deixavam com água na boca: enormes cajus, mangas, goiabas. Pitombas e tamarindos. Montes de melancias e abacaxis açucarados.
Noventa por cento da agricultura do município era a plantação de tomate. Existiam na cidade três fábricas de massa de tomate: a Peixe, a maior e mais importante de todas e as menores, Rosa e Leão, bem modestas. Todas produziam, além da massa de tomate, a goiabada. As fábricas forneciam aos agricultores, terra e sementes, com o compromisso de eles entregarem o produto ao seu fornecedor. E haja tomate por todo o lado. Todo terreno arável do município era plantado de tomateiros. Por toda a extensão que a vista alcançasse era só tomate, pelos montes, planuras, vales, várzeas. Belos frutos, tamanho gigante. Vi fotografias de tomates de três e quatro quilos. Na época da safra, os caminhões que transportavam os frutos para a Peixe, passavam pela praça em fila, a caminho da fábrica, dia e noite, pois o produto que transportavam era perecível e não podia esperar muito, por isso o trabalho tinha que ser de vinte e quatro horas por dia. Os tomates, a princípio eram entregues em caixotes de madeira, mas como esta logo se deteriorava com o uso contínuo em contato com as frutas, acabavam a safra conduzindo o tomate sem nenhuma proteção, jogados simplesmente no caminhão. Foi o que me contaram. O produto chegava à fábrica já quase em estado de massa, espremidos , escorrendo suco pelo caminho.
Os donos da fábrica Peixe, os Britos- Candinho e Carlos- eram os homens mais populares da cidade. E mereciam. Tratavam bem seus operários e eram estimados por eles.
Anualmente, após a safra, havia a tradicional Festa do Tomate, a festa máxima da cidade, um colosso de manifestação festiva, para a qual toda a população era convidada (e comparecia), onde se comia e bebia (champanhe inclusive) durante vários dias. Todos os operários recebiam presentes.
Embora Pesqueira não estivesse na região de sertão, mas em zona classificada como agreste , era castigada pelas secas. Nas minhas viagens pelo município, numa dessas ocasiões, vi reses morrendo ou mesmo mortas de fome e sede, pasto seco, vegetação mirrada, a paisagem cinzenta. No terreno ressecado e gretado, como um milagre da natureza, verdejava aqui e ali o umbuzeiro, árvore de porte médio, frondosa, que, incrivelmente, resistia à seca. O mesmo acontecia com os cactos, que vegetavam espinhentos e enfezados, à falta de chuvas. Pelo terreno esturricado, pelos rochedos íngremes, como um resquício de vida, via os mandacarus de três, quatro e cinco quinas., os rabos-de-raposa, palmas, cabeça-de-frade, facheiro e outras cactáceas. Ente elas, alguma salvavam a vida do gado na falta completa do pasto, o que levaria à inanição. Eram os mandacarus e as palmas. O criador passava os primeiros pela chama para lhes queimar os espinhos pequenos que não necessitavam ser queimados. O gado o aceitava melhor do que o mandacaru, pois a palma, apresentando substãncias nutritivas e polpa úmida, mata a fome e mitiga a sede dos animais.
Havia plantações cultivadas de palmas, cuidadas como qualquer outra lavoura, esperando o período da seca.
Por ocasião das secas havia um fenômeno interessante com as pombas de arribação, chamadas pelos sertanejos apenas de “ribaçã”. Quando escasseia o alimento no sertão, essas pombas arribam em grupos imensos, milhares e milhares, para outros lugares, em busca de melhores condições de vida. Assim, em determinadas épocas, apareciam em Pesqueira, em busca de alimento ou para a postura de ovos. Vinham em nuvens que, diziam os caçadores , chegavam a escurecer o sol. Não acreditei, até que vi o fato com meus próprios olhos. Era essa a época em que os caçadores se divertiam a valer. Alguns possuíam espingardas próprias para “ribaçã”, armas de calibre descomunal, feitas especialmente pelos armeiros, acima do calibre 12 corrente. Vi e examinei algumas delas, todas de carregar pela boca. Deixavam a bucha do chumbo meio solta, só frouxamente colocada- explicavam- assim o chumbo se espalhava mais. E comparavam o tiro de tal arma a uma verdadeira tarrafada.
As aves chegavam em tal quantidade que o barulho de suas asas pareciam o ronco de um avião e pousavam de preferência em árvores mortas os desfolhadas. Cobriam tudo. Um tiro de calibre 10 ou mais do tal bacamarte de “ribaçã” , matava dezenas de pombas e feria outras tantas.
Às vezes apareciam para desovar e o faziam no chão, à toa. Contaram-me que havia lugares em que o chão ficava coberto de ovos e os caçadores que disso tinham notícias, levavam tachos e panelas, acendiam fogo, punham água a ferver e ali mesmo, com o auxílio de mulher e filhos iam colhendo os ovos e cozinhando para melhor conservação e vendê-los nas feiras. Outros membros da família, com seus bacamartes, abatiam centenas de aves que logo eram depenadas e moqueadas com sal na fogueira para depois serem levadas às feiras. O serviço da colheita dos ovos não deixava de ser perigoso porque compartilhavam do banquete os animais silvestres, principalmente as cobras, e os conhecidos comedores de ovos, os lagartos, raposas, teiús, lobo-guará, gatos do mato, lá conhecidos como maracajás e sariguês (conhecidos como timbus).
Tomei parte numa caçada às tais pombas. Ouvi o ruído de avião, vi escurecer em plena luz do dia, quando elas passavam em nuvens compactas diante do sol. Abati com minha espingarda calibre 28, com um só tiro, cerca de dez pombas talvez. Não afirmo que seria mais, porque poderia parecer mentira de caçador.
Outra vez, fui convidado para uma caçada de onça. Uma enorme pintada estava matando bezerros, porcos, galinhas lá pros lados da serra do Gavião. Aceitei o convite muito contente, seria uma ocasião de usar minha espingarda recém-adquirida, calibre 28, novinha em folha. A caçaca seria à noite, o que já esfriou um pouco o meu entusiasmo. Os companheiros, a meu pedido , me mostraram suas armas. Eram espingardas de carregar pela boca, de dois canos, calibres relativamente finos a meu ver, para enfrentar uma onça. Regulavam, quando muito, um calibre 32. Nessa época eu possuía outras armas de caça, inclusive uma, que era coisa fina, presente do mestre Ezequiel Tundá, armeiro famoso da região. Era uma peça fabricada a capricho. Mocha (sem cão externo), coronha de madeira de lei finalmente trabalhada, cano de fino aço, sextavado, era frequentemente confundida com uma espingarda de cartucho, calibre fino, regulando 44; fiz muitas caçadas de nambus e juritis com ela. Ao apertar um botão lateral ela “quebrava”, expondo o ouvido antes embutido, onde era colocada a espoleta, o grande perigo das armas de carregar pela boca é saltar fragmento da espoleta nos olhos do caçador, cegando-o, mas aquela não apresentava este perigo.
Apesar da gozação dos companheiros, após pensar bem, achei mais seguro “ir às onças” portando uma arma de peso, por isso encostei a 28 e optei por um rifle de repetição, calibre 44, que o capitão delegado de polícia me emprestou.
Ao entardecer, lá fomos para o lugar da caçada, um local de meter medo. Os companheiros se espalharam , depois de amarrarem em vários pontos, iscas vivas, galinhas e cabritos, a fim de atrair a pintada. Prepararam um jirau para mim e um outro caçador, numa árvore, a três metros de altura, perto de um dos cabritos. Lá me acomodei com o rifle pronto, bala na agulha, e uma potente lanterna elétrica, enquanto os companheiros, em outros jiraus, preparavam seus “alcoviteiros” que são pequenas candeias a querosene, de simples construção, que fornecem iluminação escassa até poucos metros. E, com tal iluminação e suas espingardinhas primitivas, já haviam matado várias onças- me contavam…
Anoiteceu. Começaram os ruídos da mata fechada, roncos, chiados, assobios e , de repente, o silêncio tétrico e aterrador da floresta nos contrafortes da imponente Serra do Gavião, cuja silhueta assustadora estava sobre nossas cabeças, recortada nas trevas da noite tropical.
Enquanto coçava as picadas dos mosquitos pensava no que me disseram: que a onça só aparecia- se aparecesse- tarde da noite, talvez na madrugada, atraída pelos balidos do cabrito.
Algumas horas depois, o corpo entorpecido, cansado, com o frio da noite a me arrepiar todo, eu já estava arrependido da aventura. Depois , noite alta, achei que podia cochilar um pouco, já que os companheiros estavam alerta, desistindo de uma vez de matar uma onça pintada…
O bicho foi abatido de madrugada, em local distante do que nós estávamos, por caçadores que não pertenciam à nossa equipe e que nem conhecíamos.
E na volta, no lombo do cavalo, após uma noite insone e sobressaltada, prometi a mim mesmo nunca mais me meter em caçadas de onça. Continuaria me divertindo de vez em quanto, pelas várzeas e montes próximos com a caça de penas, nambus, juritis. Caça grossa foi a primeira vez….e a última.
NOTA: Na década de 40, quando aconteceram estes fatos, não havia a preocupação com a preservação da natureza nem a Lei de proteção à flora e fauna.
Mantinha as melhores relações com os colegas da cidade, todos profissionais veteranos. Jorge de Sá, Adalberto, Lídio Paraíba, este último o mais velho de todos, era estimadíssimo na cidade. Formado pela Faculdade da Bahia, residente em Pesqueira há muitos anos, praticamente tinha cinquenta por cento da clientela. Homem bom e caridoso, lidava mais com a população pobre e carente do lugar era procurado até para aplicação de injeções e curativos em pequenos ferimentos. Com ele trabalhava Adalberto como seu assistente e, como enfermeiro, o velho “mestre” Alexandre, há muitos anos, por isso se dizia na cidade que ele já era “meio médico”.
Jorge de Sá tinha também boa clínica e era muito considerado pelos pesqueirenses. Pouco tempo eu estava na cidade e, certa madrugada, recebi um chamado para um local distante: era uma mulher grávida que estava com hemorragia. Embora eu já soubesse do que se tratava, pois o diagnóstico já estava feito pelas informações recebidas, e soubesse como agir numa emergência dessas, estava certo de que o faria num hospital bem aparelhado: uma operação cesariana.
A obstetrícia sempre me atraiu e eu iria saber, nesta especialidade, quanta diferença há entre atender um parturiente na mesa de parto, rodeado de enfermeiras e de todos os recursos de urgência sob minhas ordens e me “virar” no mato, com os únicos recursos de que poderia dispor na maleta, sozinho, sem auxiliares categorizados, com iluminação deficiente, rodeado às vezes de parentes, parteiras sujas e ignorantes, maridos e pais muitas vezes hostis.
Aquele foi o primeiro chamado para fazer um parto a domicílio e logo me aparece um caso grave! Tratava-se de placenta prévia, isto é , este órgão, normalmente inserido nas partes altas do útero, se achava colocando em situação baixa, o que com as contrações ou pelo próprio crescimento do útero, provoca deslocamentos parciais, com consequentes hemorragias graves e às vezes até mortais.
Hoje constitui indicação absoluta para a operação cesariana, mas, naquela época, quando não havia as facilidades de hoje, mesmo nos hospitais, antes da abordagem cirúrgica do caso, tentavam-se outros recursos, como a chamada versão de Blaxton-Hicks, que agora se me apresentava, sem anestesia, sem iluminação, sem ajudantes, numa cama comum.
Pensei comigo que a mulher, após a perda de tanto sangue, o que sempre acontece, seria capaz de morrer na minha mão, pois, pelo que me contaram, o caso era excepcionalmente grave. Por isso resolvi apelar para o auxílio de um colega experiente e fui procurar Jorge de Sá, que se oferecera para ajudar-me quando dele precisasse.
O local era o menos favorável possível. A mulher, num lago de sangue, um quartinho estreito, cama baixa, iluminação à “alcoviteiro” fumacento. Gente por toda a casa, dando palpites, a parteira-curandeira fazendo benzimentos e espalhando ervas e folhas no ventre da mulher, enchendo-a de beberagens. Dei anestesia, sob os olhos desconfiados do marido que achava que ela ia morrer, sufocada com aquele aparelho tapando-lhe a boca. Naquele tempo, usava-se com frequência o éter como anestésico e eu possuía a máscara adequada para isso.
Jorge fez com maestria a manobra de Blaxton-Hicks; puxa-se o feto pelos pés, fazendo-o dar uma verdadeira cambalhota e, ao forçá-lo para sair, ele comprime a placenta, fazendo parar, provisoriamente a hemorragia, mas, em consequência dessa compressão, ele pode morrer por falta de oxigênio. Na grande maioria das vezes o feto já está morto, devido ao deslocamento mesmo parcial da placenta. Se o feto ainda estiver vivo, o dever do parteiro é proteger a vida da criança e da mãe, e pedir para ambos a proteção de Deus….
Já antes de intervir, tínhamos feito o diagnóstico da morte da criança e tudo acabou bem, dentro das possibilidades dos parteiros. O marido, naturalmente, achou que foi obedecido quando nos ordenou: “matem a criança, contanto que salvem a vida de minha mulé!”.
Comecei a pensar então que devia aprender a praticar uma nova obstetrícia, para encarar os partos a domicílio sem nenhum recurso, apenas podendo contar com meu poder de improvisação. Desde aquele primeiro caso, comecei a procurar e acabei encontrando o “Tratado de Obstetrícia no Campo” e “La prática Obstétrica em lá Medicina Rural”.
Comecei a aprender a improvisar. A encarar os casos contando comigo mesmo e com os recursos que levava na maleta.
Veja a situação dramática em que se viu um colega que clinicava em Belo Jardim, uma cidade próxima a Pesqueira , segundo o que me contou um farmacêutico lá estabelecido. O doutor Deodato (o nome é fictício) foi chamado para um caso de parto e conduzido de carro acompanhado de dois homens conhecidos como guarda-costas de poderoso fazendeiro da região. Um deles, a caminho, lhe disse:
-Doutor, trate bem da mulher de seu Liberato (nome também fictício) e pode apresentar a conta que quiser, porque ele é rico e pode pagar bem.
Deodato, como todo mundo em Belo Jardim, conhecia a fama de Liberato, dono de engenhos de açúcar, homem violento e chefete de meia dúzia de jagunços. Lá chegando, a casa cheia de gente, caras patibulares, homens portando abertamente armas de fogo na cintura, parteiras, comadres, parentes, meio mundo a explicar a doença da mulher, ele passou a examinar a paciente. Tratava-se de um aborto hemorrágico de quatro meses, o mais perigoso em termos de hemorragia. Na maioria dos casos, sai o fetinho e a placenta fica retida, às vezes com perdas de sangue, tento que ser retirado com manobras perigosas e curetagem, necessitando de anestesia. No caso, havia pequena perda de sangue e a mulher se achava em relativo bom estado geral, apenas agitada, nervosa, dando gritos histéricos.
Após os exame s de rotina e feito o diagnóstico, ele expôs as dificuldades e perigos que a emergência apresentava.
Liberato fechou a cara. Chamou-o numa sala e ali, a sós com o médico, perguntou-lhe:
-O senhor não é médico ? Nãoentende disto? Se não entende, por que veio ?
-Estou apenas lhe explicando a situação, seu Liberato. Sou médico, sei o que está acontecendo e conheço os perigos do caso. Vou curetar sua mulher, mas, dadas as circunstâncias de ambiente e falta de recursos, auxiliares, anestesia, etc., não posso lhe garantir o completo êxito da operação.
-Não quero saber de nada disso- retrucou o fazendeiro- O sinhor diz que é doutor, que é entendido, mandei lhe chamar, o senhor veio, portanto salve a minha mulé. Garante?
-Não posso lhe garantir nada, seu Liberato. – tornou o médico – Sua esposa está em bom estado por enquanto, mas acho que é melhor removê-la para o Recife, onde ela poderá ser atendida por médico especialista, com todas as chances de sobreviver, pois seria operada num Hospital.
-Nada disso, seu doutor. ´- exclamou o homem á impaciente – É o senhor mesmo que vai resolver o caso. A mulé não aguenta a viagem. E trate de fazer o serviço bem feito. Sentindo a ameaça no ar, Deodato procurou se acalmar a manter dignidade.
-Sei como trabalho , senhor. Sou médico e não nenhum curandeiro que faz milagres.
-Por isso mesmo, seu médico. Se precisasse de curandeiro, mandava chamar o Chico. Trate de trabalhar, é para isso que estou lhe pagando. E lhe digo mais: o senhor só sai daqui quando salvar minha mulé, hein?
-Por que diz isso ? Até parece que está me ameaçando.
-E tou mesmo, seu doutor. Salve ela e diga seu preço qui eu pago com todo gosto….
-Mas eu já lhe disse que o caso tem certo perigo, e é caso para uma Maternidade no Recife. Ela pode até morrer, pois não disponho aqui dos instrumentos de que necessito, de medicamentos, de sangue, para uma transfusão…
-Bem…O que tenho a dizer é que faça tudo pra salvar a Cida dela. Porque, se ela morrer o senhor morre também.
-Mas o senhor não pode dizer uma coisa dessa !
-Posso, digo e repito. Quer ver uma coisa?
O fazendeiro abriu uma porta e mostrou ao médico dois homens sentados na sala contígua.
-Tá vendo aqueles dois? São meus afilhados e basta eu mandar para eles acabar com a vida de qualquer um.
Deodato sentiu-se empalidecer e as pernas trêmulas.
-Vamos, sinhô, comece a trabalhar.
Conforme contou depois, o médico não tinha dúvida de que seria assassinado se não conseguisse resolver o caso satisfatoriamente ou se acontecesse algum acidente durante a curetagem uterina ou após ela. Pensou bem e procurou se acalmar, pois não poderia trabalhar no estado de nervos em que se achava. Explicou isso ao marido da paciente, que concordou numa pequena espera e ofereceu-lhe um cafezinho como calmante, que ele não aceitou.
Seguido pelo marido, voltou ao quarto, abriu a maleta, procurou nela alguma coisa , tornou a procurar e por fim, disse:
-Bem, seu Liberato, vou operar sua mulher, mas estou verificando que falta aqui um instrumento, que esqueci no consultório. Preciso ir à cidade buscá-lo.
-Esqueceu…o quê?
-Um instrumento…Uma ferramenta. Preciso ir buscá-lo lá em casa.
-Qui tar de instrumento é esse?
-Chama-se especulo…Preciso também de um tambor de gaze, de soro e de outras coisas mais que deixei em casa porque não sabia de que se tratava. E preciso também de outro médico aqui para me ajudar.
O outro pensou um pouco.
-Bem, se é assim, posso mandar um homem buscar. O senhor escreve um bilhete para o outro doutor e ele que traga a ferramenta que o sinhor precisa…
Usando seu receituário, Deodato escreveu o bilhete mais ou menos nestes termos: “Dr. Ramos, tenho um difícil caso obstétrico com a esposa do Sr. Liberato. Preciso com urgências de um instrumento que me esqueci de trazer e estou na emergência de usá-los, assim como preciso de sua ajuda aqui. Vá ao meu consultório , abra a segunda gaveta da escrivaninha e traga-me o instrumento que lá está guardado. Venha e traga outro instrumento para você usar junto comigo, talvez precise de dois. Traga além disso, gases, anestesia, ocitócitos, soro e borrachas”.
Dr. Ramos leu o bilhete levado pelo peão Liberato, comunicou-se com a mulher dele e recebeu a chave. L[á abriu a escrivaninha a escrivaninha e o único “instrumento” que lá havia era um revólver 38, cano longo, devidamente municiado. Não demorou muito a compreender do que se tratava e de que espécie de auxílio Deodato precisava, pois conhecia bem a fama do fazendeiro truculento. Arranjou uma desculpa e mandou na frente o capanga do fazendeiro. Foi em seguida no próprio carro e o delegado com os dois homens foram logo depois. A polícia ficou perto da casa, escondida, mantendo certa distância, de prontidão, pronta para agir se ouvisse tiros ou gritos de socorro.
Dr. Ramos chegou levando a maleta.
-Trouxe tudo que eu pedi? –indagou Deodato.
-Tudo.- respondeu o colega –Pode ficar tranquilo. Trouxe também meu especulo e mais dois auxiliares que estão na sala, se for preciso nos ajudar.
Logo achou meios de entregar a arma ao colega sem ser notado. Sob anestesia, operaram com êxito a mulher, curetando-a e controlando a hemorragia.
Cobraram seus honorários bem cobrados, que Liberato pagou sem regatear, não sem antes oferecer um copo de vinho zurrapa que eles acharam melhor engulir, em honra ao trabalho dos médicos. Nunca ele soube qual foi o “instrumento” trazido e que ficou na cintura dos dois durante todo o tempo da operação. Liberato chamou Deodato em particular e desmanchou-se em desculpas, fazendo ver que o ameaçara devido ao estado nervoso em que se achava, pois não queria perder a “mulé”.
Depois dessa, por via das dúvidas, Deodato resolveu mudar-se de Belo Jardim e veio trabalhar em São Paulo.
O médico de uma cidade do interior está sujeito a passar por situações incríveis. É um homem educado, com curso superior, acostumado à vida numa Capital, que se encontra de repente obrigado a viver num ambiente social completamente estranho, exercendo sua profissão sem a infraestrutura necessária ao correto desempenho da mesma , muitas vezes cercado de incompreensão, ignorância, charlatanismo e fanatismo…
Este era o quadro, com poucas exceções, que o jovem médico recém-formado teria que enfrentar em muitas cidades do interior do país. Os primeiros anos da minha vida profissional foram eivados de episódios tragicômicos. Recebi um bilhete certa vez:
“Seu dotor Reinato Meu filho Severino tem 7 anos e não anda somente senta, tem um buraquinho na regada da bunda que sai matéria. Quero um remedinho que cure mas não tenha indieta”.
Era apenas um “remedinho” para o que eu diagnostiquei, à distância, como um quisto pilodinal, de onde sai “matéria”, isto é, pus. Um caso para cirurgia. Além de tudo, um remedinho que não deve ter “indieta”, isto é, dieta. O povo muitas vezes tinha mais medo da dieta que o remédio exigia do que da própria doença.
Os bilhetes que sempre recebi e até hoje ainda recebo trazem, às vezes, dados anamnésicos para consultas e outros até com desaforos, deveriam ser colecionados porque dariam bom material para uma tragicomédia. Como este exemplar:
“Seu Dotor. Vou dizer para o Snr. O que eu não disse ontem a noite. O Snr. Diz que tem licença para curar mas não passa de um burro inguinorante e atrazado. Vá aprender primeiro a dizer que sabe curar. O Snr. errou dizendo que minha filha está prenha porque Chicão já deu remédio pra ela e diz que ela tem somente olhado”.
Esta descompostura que recebi de um cliente da vila de Bonsucesso, referia-se a um caso que havia atendido há poucos dias: uma mocinha estava grávida (prenha, como o pai dizia) de cerca de dois meses, mas como era solteira, após os exames feitos e com a certeza diagnóstica que eles resultaram, falei reservadamente ao pai sobre o assunto que, naqueles tempos, assumia uma importância especial, um verdadeiro escândalo para a família. O zeloso pai recebeu horrorizado a notícia, mas se absteve de maiores comentários, só a mãe ficou resmungando. O conhecido curandeiro Chicão foi procurado para confirmar ou discordar do meu diagnóstico e, “entendido em doenças de mulé” como era, discordou. Era apenas “olhado”, ou seja, mau olhado, o que era de esperar, em se tratando de jovem bonita como era a paciente de 15 anos, portadora de bela aparência e corpo esbelto. Medicou-a com remédios comprados na farmácia e mais uns chás de ervas, que fariam a menstruação de dois meses aparecerem. E de fato apareceram, sob a forma de aborto completo de dois meses, apressando a “cura”.
Os bilhetes, com os quais me fazem consultas, em muitos casos são completos, com todos os dados anamnésicos:
“Dr. Reinato (eu era muito conhecido por essa corruptela do meu nome). Mande um remédio para minha mulher que já tem corrido bastante médico mas nem o dotor Lídio curou ela. Já tirou consulta com Chicão e Zé Figura já deu remédio pra ela e nada adiantou:
1-Tem tosse presa no peito e catarreia muito. 2- Às vezes o catarro vem misturado com sangue. 3- Tá magra que nem o cão. 4- Só quer comer ovo com farinha. 5- Tem caganeira todo dia e peida muito. 6- Vomita quase tudo que come. 7- Doe o cocoruto da cabeça. 8-Se dá bem só com o chá de umburana. 9- Tem uma porção de coisa que não me alembro. P.S. Dr. Lídio me disse que pode ser tisca. Será mesmo? Se é mesmo, qero que o Snr. me mande um remédio bom, nem que seja caro”.
Pronto. Por essa peça completa de anamnese com sota sintomatologia competentemente numerada, eu que fizesse o diagnóstico, aliás já feito pelo Dr, Lídio, de tuberculose (tisca ou tísica) e mandasse um remédio para curá-la, mesmo sendo caro, de certo também que não tivesse “indieta”. Mas, como poderia eu curar uma doente, a quem nem o Dr. Lídio, nem o famoso curandeiro Chicão curaram?
Nunca me preocupei muito com os curandeiros e até me divertia com eles. Eram infalíveis nas feiras da cidades e das vilas e todos afirmavam que tinham “cartas” para curar. Deviam se referir a algum documento fajuto, assinado por algum “coronel” às vésperas de eleição, dando-lhe licença para “curar”.
Nas feiras de Pesqueira, lá estavam sempre os curandeiros-raizeiros, com suas bancas cheias de ervas e raízes, garrafadas e unguentos, vendendo com a maior desenvoltura, seus “santos remédios” para curar qualquer doença. As garrafadas tinham variável quantidade de ervas curtidas, amassadas , cozidas, veiculadas em aguardente ou vinho zurrapa e adoçados com mel. Os unguentos eram sempre feitos à base de “remédios da farmácia”, onde havia mercúrio (calomelano), enxofre, alvaiade de zinco, tudo veiculado com banha ou óleos e, por isso, tinham sempre odor repugnante.
Alguns mais “eruditos” exibiam a figura de um “esfolado”, que é um cartaz usado nas escolas, onde há uma figura humana mostrando os músculos do corpo ou o esqueleto humano, e onde ele mostrava a localização das doenças dos seus “clientes”. Outros usavam o antigo chamariz de uma cobra viva ou um macaquinho amestrado à força de pancadas e torturas.
Parei diante da banca de um raizeiro e fiquei observando. Ele, ao ver meu interesse, começou suas preleções sobre “sifres” que outra coisa não era senão sífilis, bexiga braba e verminose. Tinha à venda, um unguento universal que servia para todas as doenças internas e externas. As internas seriam curadas se o doente comesse dele umas duas ou trás dedadas por dia, ao passo que as externas (doenças da pele) era o tal unguento usado em fricções locais e o paciente proibido de tomar banho durante o tratamento.
Afirmava (e exibia documentos , papéis com declarações de curas) que tinha remédios para todas as doenças, desde morfeia( hanseníase) passando por anemia, falta de apetite, e regras atrasadas. O homenzinho começou a falar sobre doenças “pegadas” (venéreas), para as quais ele possuía uma garrafada que era uma verdadeira cacetada em qualquer gonorreia….
-Será que cura mesmo?- perguntei.
-Cura, sim sinhô. –mas fez uma ressalva- Cura todas gonorréia,, só não cura a primeira que o homem pegou.
Perguntei, mas ele não soube dizer por que não curava a primeira. Procurei saber se ele tinha algum fortificante.
-Olha esse aqui.- mostrou- É o remédio que eu vendo mais. Faz veio virar moço. Mas o veio tem que tomá dez frascos , mode virá rapaz.
Rimos àquelas palavras e o raizeiro continuou:
-Tenho outra garrafada que eu preparo só de encomenda. Ela se chama Alevanta Difunto e vai cem qualidade de ervas e raiz. Mas custa muito caro, quase um conto de réis !
Havia muitos outros “santos remédios” contra qualquer doença, com nomes bem específicos e apropriados: “Limpa Tripa”, “Saúde das Veia”, “Saúde dos Veio”, “Cura Tudo” e assim por diante.
Eu viajava com Manoel Cristóvão toda semana para as vilas Sanharó e Genipapo, onde tinha regular clientela nos dias de feira. Numa dessas viagens, a meio caminho, o fordeco deu uma parada que o motorista , um dos filhos de Manoel Cristóvão fosse ao mato, fazer uma “necessidade”.
Desci do carro e peguei a espingardinha calibre 44 que seu Manoel trazia com ele e fui das umas voltas por ali, talvez encontrasse alguma caça. Um gavião estava pousado num pau à beira da estrada; aproximei-se cautelosamente e apontei a arma. Enquanto apontava, entrevi na elevação da estrada adiante, um grupo de quatro ou cinco homens montados, que ali apareceram, galopando ao nosso encontro. Abaixei a espingarda, olhei o grupo e senti-me empalidecer….Os tais empunhavam rifles e fuzis, chapéus de couro de abas largas viradas para cima, onde estavam pregados ou pintados alguns signos e presos ao queixo por tiras de couro decoradas. Duas cartucheiras cruzavam o peito de cada um deles e um longo punhal aparecia na cintura, presos aos largos cinturões, também cheios de balas de fuzil.
-Valha-me Deus!- pensei comigo mesmo- Cangaceiros!
Olhei Manoel Cristóvão que também descera do carro e, de olhos arregalados por detrás dos óculos, olhava os que iam chegando…
-Proooooonto!…São cangaceiros….Estamos. fritos!
O grupo estacionou os cavalos numa nuvem de poeira junto a nós. Levantaram os canos das armas e, o que vinha na frente, que parecia ser o chefe, um mulatão reforçado, de óculos, perguntou:
-Ei! Quem são vocês? O que esse moço ia fazer aí com essa espingarda?
Fazendo um esforço para me manter calmo, respondi:
-Nós somos de Pesqueira….Ia atirar num gavião.
-Ah, bem!- fez o que parecia ser o chefe do bando. O que há com o carro? Precisam de ajuda?
-Não, obrigado.- respondeu Manoel Cristóvão chegando mais perto. –Não tem nada, o motorista foi ao mato.
-Tá bom, então- falou o outro.
Inclinou-se para frente e encarou o velho farmacêutico.
-Ôxente! – quase gritou –Apois você não é o boticário Mané Cristovo?
-Sim…Sou eu mesmo….-respondeu Manoel Cristóvão.
-Não tá me conhecendo, cabra? – perguntou ele. –Não se alembra do cabo Belarmino, de Custódio, seu Manezinho?
-Ah, sim! –lembrou-se Manoel Cristóvão. –Agora to te reconhecendo, Belarmino! Me lembro de você, sim! Mas que susto que vocês me deram!
-Pensaram que nóis era cangaceiro, hein?
-Sim, pensamos sim….Mas o que é que você está fazendo por aqui, Belarmino?
-Sou comandante do destacamento de Pedra, seu Manezinho e vamos fazer a prisão de um rapaz ali adiante.
-Ah!- fez seu Manezinho, visivelmente aliviado, com eu também.
-Então mora em Pesqueira, hein?
–Há muitos anos, Belarmino. E você?
Conversaram um pouco sobre a época em que se conheceram, na Vila da antiga Custódia. Fui apresentado a pedido de Belarmino.
-É um novo doutor que está morando em Pesqueira, Dr. Renato.
-Ah, sim!- aprovou o comandante- Um doutor novo? E é bem mocinho, hein?
Depois, com um aceno de mão, picou o cavalo e recomeçou sua disparada.
-Adeus, seu Manezinho, se precisar de mim, pode dispor! Até mais!
E nós ficamos ali, ainda um pouco assustados pelo episódio inesperado.
-Bem.-disse o filho de Manoel Cristóvão, que chegava amarrando os calções –Vi logo que não eram cangaceiros, vi logo que eram da polícia. Os bandidos não andam com os rifles virados para cima, vêm logo apontando para a gente.
Aprendi mais essa. Porém, o susto demorou e nunca me esqueci daquele encontro na estrada com o cabo Belarmino. Manoel Cristóvão contou- me depois, que o conhecera como ex-cangaceiro em Custódia, onde sentara praça para a polícia. Como todos os policiais que andavam pelo sertão, usava nas suas viagens aquele traje característico dos cangaceiros e também armas semelhantes, sem dispensar o punhal descomunal de mais de 50 centímetros de lâmina, nem os chapéus ornamentados.
Tempos depois, Belarmino fez parte do destacamento de política de Pesqueira e nos tornamos bons amigos. Ele gostava de lembrar aquele encontro na estrada deserta e ria gostosamente, quando se referia ao susto por que passamos. Cuidei de uma afecção ginecológica na sua mulher e, diga-se de passagem, embora ele me pedisse a conta, nunca me procurou para pagar…Até que um dia ele veio para se despedir de mim, pois fora transferido para outra cidade. Boa pessoa, conversador, gostava de contar “causos” sobre cangaceiros, coisa que ele conhecia bem, pois ele próprio fora um deles, segundo diziam.
Ao se despedir de mim, pediu-me que sempre se lembrasse dele e deu-me, de presente, uma pequena pistola automática, de cabo de madrepérola.
E eu nunca mesmo que esqueceria dele, pois não tardaria muito, iria entrar na minha vida de maneira que eu nunca poderia esperar.
Naquele tempo, os cangaceiros andavam pelo sertão dos Estados do Nordeste, Pernambuco inclusive. Lampião, ninguém saia por onde andava, mas de outros cangaceiros menores, de vez em quando se tinham notícias. À sua procura, corriam a caatinga as tropas policiais ditas “volantes”. Esses bandidos errantes eram assunto de histórias falsas e verdadeiras, contadas e recontadas pelos fazendeiros, sitiantes e gente da cidade também. Falava-se do aspecto aterrador dos bandidos, que não cortavam o cabelo, pois tinham o “corpo fechado” e, por isso, como Sansão, o corte de cabelo anularia tal proteção contra balas e ferro frio. E, em vez de banho,usavam perfumes para disfarçar o bodum que exalavam; usavam punhais enormes, de setenta e mais centímetros de lâmina, afiada com dois gumes, feitos, como se dizia, de ponta de espada, (aço de antigas espadas militares) especialmente por encomenda, pelos especialistas do sertão, os cabos às vezes finalmente trabalhados, com incrustações de fios de ouro…O armamento também constava de rifle 44, mosquetão militar ou fuzil e armas curtas, revólveres, pistolas e, infalivelmente, a pistola de guerra alemã, conhecida como parabellum.
Eram geralmente cruéis e desumanos, ex-presidiários fugidos, assassinos procurados ou mesmo homens que já tinham antecedentes criminosos e procuravam refúgio na vida incerta e perigosa do cangaço. Conta-se que, apesar de crués com seus inimigos, tinham raramente momentos de brandura e rasgos de caridade. Com a mesma indiferença com que davam uma esmola , sempre generosa a um cego ou mendigo encontrado na estrada ou na rua, atiravam na cabeça de um prisioneiro ou o sangravam na jugular com seus enormes punhais…Dedos cheios de anéis e alianças, onde se misturavam brilhantes legítimos com pedras de vidro colorido, tinham traje típico: alpercatas feitas de pneu, árias sacolas e mochilas a tiracolo onde carregavam munição excedente, remédios, comida (que se limitava, às vezes, a rapadura e farinha), fumo , e orações fortes que lhes mantinham o corpo fechado contra balas.
Manoel Cristóvão me contou que, quando morava em Custódia, Lampião assaltou e tomou a cidade, que fechou as portas. Estava na sua farmácia e com um só porta aberta, quando um cangaceiro adentrou por ela perguntando pelo boticário.
-Ah, é o sinhô? Apois eu quero comprá uns remédios.
-Sim, capitão, o que deseja?
-Quero Euritmine. O sinhô tem?
Felizmente ele tina essas antigas cápsulas analgésicas. O bandido separou um punhado de vinte cápsulas, pediu três vidros de Maravilha Curativa do Dr. Hunfreys, remédio do tempo dos nossos avós, que tinha indicação para todas as doenças internas e externas, como sedeclarava na bula, e perguntou por um depurativo para “afinar” o sangue. Pediu também gases a ataduras para curativos e perguntou quanto era o preço daquilo. O farmacêutico desmanchou-se em sorrisos:
-Não é nada, seu Capitão…
O cangaceiro insistiu.Chegou mesmo a tirar da sacola algumas cédulas, mas ante a recusa em receber , tirou da cintura um punhal com a respectiva bainha. Media setenta centímetros e deu-o ao farmacêutico.
-Então taqui um presente meu, seu boticário. –disse ele- Guarde como lembrança de Levino, cunhado de Lampião.
Manoel Cristóvão guardou a arma fabricada com ponta de espada como diziam, cabo apresentando fios de ouro embutidos no material. Este aço especial provinha mesmo de antigas espadas militares e era de primeira qualidade como conhecedores me afirmaram. Em épocas passadas, havia os majores , capitães e coronéis da “Guarda Nacional”, que compravam suas patentes e tinham direito a usar o título , a patente e até o fardamento respectivo, cheio de galões, inclusive a espada ou espadim para completar a comédia, que os coronéis levavam a sério, principalmente diante dos eleitores na época das eleições.,
O punhal que Manoel Cristóvão recebeu era uma peça fina, de gume duplo, cabo e começo de lâmina incrustados a ouro, trabalho de algum artífice desconhecido do sertão. A bainha já estava completamente estragada no dia em que ele me contou a história e me mostrou a arma, cuja lâmina estava enferrujando por falta de cuidado. Como me interessei por ela, ofereceu-me de presente e guardei-a em uma nova bainha, por curiosidade , durante muitos anos.
Hoje ela faz parte da coleção de armas de Amador Menk, aqui em Angatuba.
Por duas vezes andei perto de cangaceiros, mas nunca os encarei. A primeira vez foi em Pedra de Buíque, uma pequena e atrasadíssima cidade, não muito longe de Pesqueira, onde tinha ido atender a um chamado, quando correu a notícia de que um bando de cangaceiros andava por perto e talvez invadisse a cidade. Sabendo que os soldados do destacamento local se apressavam em tirar as fardas, trocando-as por trajes civis e abandonando a cadeia, tratamos de dar o fora o quanto antes.
Soubemos depois que os bandidos, cerca de oito homens, não haviam entrado na cidade, apesar da falta de resistência que apresentaria, mas apenas saquearam uma vila próxima, onde mataram um homem que esboçou resistência. S oubemos depois, que essa morte fora um favor que os cangaceiros prestaram a um coiteiro.
A segunda vez foi em Boa Sorte, vila do município de Pedra. Era dia de feira, eu fora para lá, também atendendo a um chamado de antigo cliente meu, como sempre, acompanhado de Manoel Cristóvão e no seu fordeco. Ao calor do meio dia, foi dado o alarme:
-Cangaceiros! Os bandidos vêm vindo para cá!- gritava um homem esbaforido, correndo pela rua.
Foi aquela debandada e, em poucos minutos, acabou-se a feira. Nós também demos no pé, pedindo a Deus que não encontrássemos os bandidos pelo caminho, embora sabendo que eles não usavam as estradas, só andando a pé, pelo meio do mato. Depois nos contaram que um bando não identificado tomara a praça. Mataram os dois únicos soldados do destacamento, violentaram duas professoras (elas eram as vítimas preferidas pelos bandidos) e fizeram uma limpeza no pequeno comércio local, donde levaram o pouco dinheiro que havia emn caixa, alguma munição, roupas, chapéus e outras utilidades.
A época dos cangaceiros foi um tempo de martírio para a população de pequenas cidades do interior de vários Estados. Além do famoso Lampião, outros homens cruzaram o sertão em todas as direções, matando, roubando e saqueando cidades médias e pequenas, vilas e fazendas, muitas vezes protegidos pelos coiteiros que eram pequenos fazendeiros que lhes forneciam pouso, alimentos, roupas, armas e munição e , sobretudo, informações sobre o movimento das tropas volantes, voluntariamente ou forçados a isso, com medo das represálias sangrentas. Os coiteiros eram respeitados pelos bandos, pelos bons serviços que lhes prestavam e alguns tinham até salvo conduto fornecidos pelo próprio Lampião, que lhes garantia livre trânsito pelo sertão a salvo de ataques de outros cangaceiros, o que, consta, era obedecido como uma espécie de código de honra entre os bandidos.
As tropas volantes da polícia, encarregadas da perseguição, muitas vezes agiam com violência equiparada ou ultrapassada à dos próprios cangaceiros, torturando e assassinando os fazendeiros de quem suspeitavam fossem coiteiros, para obrigá-los a denunciar onde estariam os bandidos.
Coiteiros, verdadeiros ou não, às vezes ninguém se negava a receber em suas propriedades os cangaceiros, para evitar mal maior. Os soldados das tropas volantes, que recebiam um soldo extra por aquelas missões, nem sempre tinham interesse em perseguir efetivamente os bandidos. Quando estes fossem capturados, a força seria extinta e seus componentes perderiam o dinheiro extra que ganhavam, às diárias e outras mordomias que recebiam. Em muitos desses casos- comentava-se- limitavam-se a deslocar de um local para outro, anunciando previamente a sua chegada, dando assim tempo a que os coiteiros avisassem os cangaceiros.
Usavam praticamente a mesma indumentária que os perseguidos: chapelões de couro de veado, de abas presas na copa na frente e atrás, enfeitados com moedas e signos estranhos. Tiras de couro, chamadas queixeiras, prendiam-nos ao queixo, também enfeitadas com moedas; a testeira era outra tira cheia de medalhas colocadas na testa, lenço no pescoço, quase sempre vermelho vivo, roupa de brim cáqui, alpercatas feitas de pneu. Conduziam nas sacolas bordadas com cores, a munição para as armas, alimentos e remédios.
Usavam mosquetão militar ou rifle 44, revólver ou parabellum, além dos punhais de setenta centímetros de lâmina afiada nos dois lados, com que sangravam suas vítimas indefesas, enfiando-lhes o punhal na região da carótida em direção ao peito, alcançando assim o coração.
Para completar o quadro dos homens do cangaço, ainda cantavam nos acampamentos em roda da fogueira, onde assavam carne de bode e bebiam aguardente, cantando o estribilho famoso que, segundo dizem, era de autoria do próprio Lampião, que tinha lampejos de poeta:
Olé mulé rendeira/ Olé mulé rendá/ Me ensina a fazê renda/ Qui eu te ensino a guerreá
Muitos outros versos ele fez, mas alguns de que gostava, por exemplo, são estes:
Minha mãe me dê dinheiro / Pr´eu comprar um cinturão / Pois não há vida melhor /Qui andá com Lampião
Lampião subiu a serra / Com sapato d´argodão/ O sapato pegou fogo /Ele desceu de pé no chão
Comentávamos as desventuras do sertanejo nordestino sofrendo com a seca, com os cangaceiros e com as volantes, nas rodas de bate papo, na sala do hotel do Formosino, em companhia do delegado de polícia, que sempre era um tenente ou capitão da Polícia Militar e o Juiz de Direito da Comarca, Dr. Rafael Cavalcanti, boa prosa, homem culto, e ainda, o médico do Posto de Saúde.
Formosino sempre estava presente ao bate papo e, por sua vez, contava coisas do tempo de Antonio Silvino, outro famoso cangaceiro do nordeste, tipo de Robin Hood do sertão, que segundo alguns, um tanto diferente de Lampião, a um tempo bondoso e caridoso, auxiliando os pobres e cruel assassino desalmado, igualando-se a qualquer outro cangaceiro, de quem seu pai fora contemporâneo. Assim corria minha vida até que um dia…..
Bem, um certo dia, alguém me acusou de ser um assaltante e cangaceiro diplomado, exercendo em Pesqueira a nobre profissão de médico.
Fui, certa vez, a Boa Sorte, já elevada a categoria de cidade e desmembrada do município de Pedra de Buíque. Lugarejo atrasado, com uma só rua em ladeira, comércio à altura da cidade, o único atrativo que poderia apresentar para algum turista perdido por aquelas lonjuras, era uma montanha de pedra calcária com um cruzeiro no topo, dominando o lugar, no que diria o centro da cidade.
Estava eu ali, atendendo a um chamado qualquer, como sempre em companhia de Manoel Cristóvão, que me conduzia no seu fordeco e me acompanhava nas minhas viagens, fazendo companhia. Já estava me preparando para voltar, quando alguém me procurou, dizendo que uma mulher teve a casa assaltada por um grupo de ladrões ou cangaceiros e estava mal. O local distava uns três ou quatro quilômetros de Boa Sorte.
Chegamos lá o mais rapidamente possível, fazendo o fordeco “voar” a uns quarenta quilômetros por hora. O delegado já lá estava e de deu as informações pedidas, juntamente com a família da mulher.
Um casebre miserável, caindo aos pedaços, escorado com paus para que não caísse de uma vez. Ali morava um casal de velhos, sozinho, ela com seus setenta anos, portadora de colossal “papo” , ele aparentando oitenta, de aspecto andrajoso. Chamo-o aqui de Zé Roque porque não mais me lembro do nome dele. Apesar daquele aspecto de abandonado pela sorte, era proprietário de várias casas de aluguel em Boa Sorte e em Pedra de Buíque, algum gado e terras cultivadas pelos seus filhos. Conhecido pão-duro, agiota, tinha fama de ter em casa dinheiro escondido porque não confiava nos bancos. Com aquela aparência de mendigo, dizia-se , chegava a passar fome com a mulher, para não gastar dinheiro com comida. Tinha dois filhos que tomavam conta do gado e da pequena lavoura de milho.
O assalto ocorrera naquela tarde quando ele, tendo viajado para a cidade, deixara a mulher sozinha. Encontrei-a inconsciente, respirando superficialmente, ambos os olhos inchados, ferimentos na cabeça, sangrando pelo nariz e alguns pequenos ferimentos no bócio, onde os criminosos andaram cutucando a ponta de faca. Após examiná-la, cheguei à evidente conclusão de que ela teria que ser removida imediatamente. Tinha sintomas de fratura do crânio e de espancamento por todo o corpo. Pressão arterial zero.
Sem saber por onde começar, não dispondo de nenhum recurso no momento, aconselhei que ela fosse removida para Pesqueira, onde teria mais possibilidade de atendê-la na emergência e prepará-la para a remoção para Recife. Negativo. Os filhos e o marido não queriam que ela saísse de lá, e que eu poderia mandar buscar todos os medicamentos de que necessitasse. Mandei alguém à cidade com uma relação de alguns medicamentos, inclusive soros e medicamentos injetáveis mais urgentes. Quando o portador voltou, informou que a farmácia da cidade estava fechada. Para não deixar a paciente morrer à míngua, de acordo com a família, fiz Manoel Cristóvão voltar a Pesqueira com uma relação de material de urgência que me seria útil. Eram dezenas de quilômetros de distância e, enquanto esperava, fui fazendo o que podia, que era muito pouco. Cerca de meia noite, o carro voltou trazendo o que eu pedira. Sonhando com plasma, injetei soro em quantidade, cardiotônicos e outros medicamentos, tentando fazer o que se me afigurava um milagre. Ela faleceu de madrugada, ao amanhecer do dia.
Desanimado, morrendo de fome e cansaço, voltei a Pesqueira. No caminho, o motorista nos contou quem era Zé Roque. Era pessoa rica, embora não parecesse, com aquele aspecto de mendigo. Possuía recursos em propriedades, portanto poderia pagar-me bem. Alguns dias depois, um dos filhos me procurou e apresentei-lhe a conta, razoável, sem exageros, por um chamado de urgência, uma noite inteira à cabeceira da doente, a quilômetros de distância e e tudo o mais que pude dizer para justificar a conta de duzentos mil réis. –Mas ela morreu, NE- falou os filhos achando caros os honorários cobrados.
-Sim, – respondi- e seria milagre se ela resistisse a uma fratura de crânio, fora de ambiente hospitalar adequado. Fiz o que pude.
Ele ficou de falar com o pai sobre o pagamento e saiu resmungando. Passaram-se dois ou três meses sem notícias de Zé Roque e os dos filhos e eu já falava de voltar a Boa Sorte para lembrar-lhe a dívida. De repente, Manoel Cristóvão me apareceu. Estava nervoso. E me contou:
-Assaltaram novamente a casa de Zé Roque. Quase o mataram. E sabe quem ele acusa? Ao senhor e a mim!
Aquilo me deixou trêmulo, sem compreender bem aquelas palavras, sem saber o que responder, nem acreditar no que estava ouvindo.
-Procure o Zé Cordolino. Ele é quem trouxe a notícia, sabe de tudo.
Saímos a procurar a pessoa indicada e ele nos contou tudo, o que constou na diligência policial. O esfarrapado milionário vendera na véspera uma ponta de gado e levara o dinheiro para casa. À noite, arrombaram a porta e entraram; na escuridão reinante, ele não viu ninguém. Não acenderam luz, recebeu uma paulada na cabeça e desmaiou. Quando voltou a si estava amarrado e dois homens o rodeavam , no escuro. Ele entreviu que eram dói, um alto e outro baixo e magro. Cada um segurava um farolete e faziam questão de focalizarem nos olhos da vítima, com nítido propósito de não o deixarem reconhecê-los, Começaram a perguntar onde estava o dinheiro, mas ele não respondia. Deram-lhe bofetadas, socos, mas ele não respondia. Queimaram-lhe o rosto e o peito com cigarros, mas ele aguentou tudo, sem declarar nada. Ameaçando sangrá-lo sem piedade se não encontrassem o dinheiro, os ladrões começaram a revistar o casebre, o que fizeram minuciosamente, sem contudo nada encontrar. Reviraram e quebraram a desconjuntada cama , esvaziaram as arcas, rasgaram o colchão e nada encontraram. Por fim, deram uma “pisa” no velho e o deixaram como morto.
No dia seguinte, os filhos o encontraram desmaiado e todo ensanguentado. A polícia abriu inquérito e o delegado fez as perguntas de praxe. Não, não reconhecera os assaltantes. Nem desconfiava. Os faroletes sempre nos seus olhos o deixaram cego, mas entreviu que eram dois, um alto e outro baixo e magro. Não tinha inimigos, não desconfiava de ninguém, sabia que todo mundo gostava dele, pois não fazia mal a ninguém, não devia dinheiro a ninguém…..ah!….Quem sabe? Os únicos dois homens de que ele podia desconfiar eram o doutor Renato e seu Manezinho, de Pesqueira….
O delegado espantou-se com aquele ponto do depoimento. Dr. Renato, o médico? Seu Manezinho da farmácia? Sim, só podia ser os dois. Ele devia uma conta de duzentos mil ao médico e outro tanto na farmácia…
-Talvez eles, com raiva de mim por não ter pago o dinheiro, vieram aqui para judiar de mim e me roubar….
E, para maior espanto do delegado e do escrivão, ajuntou:
-Eram dois, isso eu vi…Um alto, outro baixinho e magro….E vieram de carro, eu ouvi o barulho….
Conversei depois com meu amigo, Dr. Rafael Cavalcanti, juiz de Direito da cidade. O magistrado indignou-se com a acusação. Meu pai, então, quase teve um enfarte quando soube do caso. Dr. Rafael recomendou-m que tivesse calma diante do estado em que me encontrava, e instruiu-me sobre os passos que deveria dar para a minha defesa, provando a minha inocência.
Processar depois o andrajoso pão-duro? Para que?
Correu o processo em Pedra, a cuja jurisdição Boa Sorte pertencia, onde todos me conheciam, sem falar em Manoel Cristóvão, que talvez fosse a pessoa mais conhecida da região. Meu advogado, o promotor, o juiz, o delegado, segundo me disseram, ninguém podia compreender o absurdo da acusação. Em pleno andamento do processo, de repente, correu uma notícia: havia um grupo de ladrões assaltando sítios naquelas redondezas e a polícia, seguindo pistas, prendeu os dois ladrões mais o chefe. Este foi identificado como Belarmino de tal, ex-cabo de polícia, ex-cangaceiro. Ao ser interrogado, sua primeira declaração foi:
-Fui o autor dos assaltos à casa do Zé Roque. Dr. Renato e Manoel Cristóvão são inocentes.
Depois disso , ainda fiquei em Pesqueira uns dois meses, pensando em me mudar. Nesse tempo, aconteceu que meu pai foi a Pedra, em viagem profissional, pois exercia um cargo federal,, era Fiscal do Imposto de Consumo. Com o calor que fazia, entrou num barzinho e pediu um refrigerante de limão, enxugando o suor do rosto. Enquanto bebia, conversava com o dono do estabelecimento:
-Tenho raiva desta cidade! –falou quando terminou o refrigerante – Aqui meu filho, médico, foi acusado e processado como assaltante e ladrão!
O comerciante se interessou e quis saber como foi aquilo e meu velho contou:
-Uns ladrões assaltaram a casa de um tal Zé Roque e mataram a mulher dele.
-Ah! –fez o comerciante –Zé Roque? Por coincidência ele está aqui.
-Aqui? – exclamou meu pai – Onde?
O homem do bar sorrindo, mostrou um velho que cochilava ali perto, sentado num banco e que acordou de repente, coçando a barba.
-É este aí.
Meu pai teve uma exclamação de furor que não pode conter e com um palavrão apropriado para o momento, agarrou-o pelo paletó e levantou-o.
-Mas eu não disse que foi ele” – exclamou o velho. –Disse somente que desconfiava!
Meu pai, sem importar com os gritos do velho começou a apertar-lhe a garganta. O homem do bar saltou o balcão e veio em socorro do agredido, procurando acalmar meu pai, que tremia de indignação e raiva.
Resolvi me mudar, o que fiz e daí a uma semana.
Mudei-me para Gravatá, uma cidade bem menor do que Pesqueira, sem indústrias, clima ameno. Era a Estação climática de Pernambuco e o lugar que os doentes de tuberculose procuravam na esperança de curar a doença com a ajuda do clima favorável.
A chegada do trem da Capital, às dezessete horas, era o momento mais importante do dia. A Estação enchia-se de moças e rapazes, principalmente delas, que iam “ver o trem”, olhar os moços do Recife, aproveitar a ocasião para ficar ali passeando e namoriscando. Comentei isso com o dono do hotel onde me hospedei e que ficava perto da Estação; ele me disse, se o trem deixasse de passar por Gravatá acabaria a “vida noturna” da cidade. Aproveitou para contar o que aconteceu com ele.
À chegada do trem, ele também ia religiosamente à Estação a fim de oferecer o hotel aos que desembarcavam e bater um papo com algum amigo. Numa dessas ocasiões, um granfino acabou de desembarcar e foi abordado por ele, mas se negou a aceitar o hotel, porque preferia um alojamento de primeira classe. O tal olhou em volta, viu as moças circulando, os rapazes também e dirigiu-se a ele, fazendo piada.
-Ó meu senhor! Aqui na sua terra só tem gente feia”
-E verdade! – concordou o hoteleiro –E chegando mais!
Havia um único médico na cidade e, como era de praxe naquele tempo, fui visitá-lo. Recebeu-me friamente e tratou logo de me tirar as esperanças de ser bem sucedido com a clientela do lugar, dando a entender que era ele quem dominava ali, em termos de medicina. Assim, mantivemos logo, desde a minha chegada, relações frias, que perduraram até minha saída , uns três anos depois.
Este meu colega chamava-se Fernando e era conhecido como pão-duro e, por isso, motivo de piadas, nem sempre convenientes. Sabia-se que guardava avaramente todo o dinheiro que ganhava, pois não tinha despesas, morando em casa de seus tios, dando consultas a qualquer preço, muitas vezes por preço vil, aceitando qualquer coisa, contanto que recebesse sempre algum dinheirinho….Era o que se falava na cidade. Solteirão, dizia que não se casaria nunca porque casamento dá muita despesa.
-Ninguém sai do meu consultório sem deixar qualquer coisa.
E as piadas corriam, nem sempre no bom sentido . O hoteleiro me contou uma vez, como fato verídico, que este meu colega ia andando por uma rua de Recife, quando um mendigo o abordou:
-Uma esmolinha, meu sinhô, pelo amor de Deus !
Fernando parou e olhou-o de cima a baixo , meteu a mão no bolso, remexeu-o como a procurar dinheiro e saiu andando, com o mendigo atrás, acompanhando-o e, já prevendo a esmola, começou a logo a agradecer.
-Que todos as bênçãos do céu sigam seus passos…
Mas o médico tirou do bolso um lenço que passou no rosto, e em seguida guardou continuando a andar. Ao ver aquilo, o mendigo ainda deu alguns passos atrás dele, gritando:
-Que as bênçãos bênçãos sigam seus passos, sim, mas nunca o alcancem, seu pão-duro de uma figa!
Outra vez contou-me o hoteleiro (que era dado a contador de piadas, por isso nunca levei a sério o que contava sobre o meu colega) que ele tomou um bonde e deu uma nota ao cobrador, para pagar a passagem. O cobrador enganou-se e deu-lhe um troco em excesso, como se a nota fosse de valor dobrado; o pão-duro conferiu ligeiramente e, apesar de ver o engano do cobrador, nada disse. Daí a instantes, o cobrador apareceu junto dele:
-Ó seu moço, cadê o troco que lhe dei ? Me devolva porque lhe dei demais”
Ele, calmamente, retirou o dinheiro do bolso, contou-o e devolveu o excesso do troco ao homem. Este não se conteve e perguntou:
-Mas o senhor não viu logo que o troco estava de mais?
-Bem… –respondeu ele com um encolher dos ombros –Não sou daqui e como não sabia o preço da passagem….
Não demorou muito e chegaram à cidade mais dois médicos recém-formados. Um deles tornou-se logo meu amigo e sempre nos demos muito bem. Jurandir –este era o seu nome- trabalhou em completa sintonia comigo, nunca desprezou minha ajuda nos casos mais difíceis que lhe apareciam e eu, mais experiente, lhe prestava auxílio com a maior boa vontade.
Uma outra pessoa de quem me lembro com simpatia é o farmacêutico Batista, ótima pessoa, prestativo, desinteressado, com quem trabalhei durante toda a minha estada em Gravatá. Tinha um ajudante e empregado da farmácia, conhecido por Mané do Vigário, apelido que o acompanhava desde a adolescência e com quem me dei muito bem. Lembro-me dos bons passeios que demos, pelos Engenhos da região, nas fazendas e açudes, onde pescávamos traíras e curimbatás. Em Gravatá tive um momento de grande satisfação ao encontrar novamente Dr. Rafael Cavalcanti, o Juiz de Direito de Pesqueira que agora exercia seu cargo na nova Comarca; foi para mim motivo de alegria o encontro com o velho amigo.
Outro encontro constituiu para mim verdadeira surpresa. Ao chegar à cidade como católico que sou, apressei-me em fazer uma visita ao padre. Encontrei-o na Casa Paroquial. Era um homem já entrado em anos, alto, robusto, muito corado, com a aparência de estrangeiro. E era mesmo. Alemão. Ao me dizer seu nome, Padre Irineu, alguma coisa me fez lembrar daquele nome. Em conversa, falei da lembrança que tinha da minha infância na Bahia, quando, na escola primária, era assistido nas aulas semanais de catecismo por um franciscano que tinha aquele mesmo nome: Frei Irineu. Conversa vai, conversa vem, fiquei sabendo , com a maior surpresa que aquele padre era o mesmo frei Irineu da minha infância que me dera aulas de catecismo e me presenteava com santinhos quando eu sabia a lição. Deixara o hábito de franciscano havia muitos anos e optara pela batina de padre comum. A surpresa foi boa para nós ambos e conversamos sobre a minha primeira professora, Laura Baraúna, a titular da escola que frequentei, de quem nunca me esqueci e a quem sempre visitei nas minhas idas a Salvador.
Vivi quatro anos em Gravatá, me dando bem com todos, tratando sempre bem os colegas e nem sempre recebendo deles igual tratamento.
Voltei à Bahia para casar-me e meu primeiro filho é pernambucano de Gravatá. Quando saí de lá para vir para São Paulo, ofereceram-me um almoço de despedida. Lá, deixei muitos amigos, pessoas de quem me lembrarei por toda a vida; com algumas delas, ainda mantenho correspondência: a família do Dr. Rafael, já falecido, Jurandir, que me visitou em São Paulo, Dr. Paulo Feitosa, o promotor, e outros. Por Jurandir soube, na sua visita a São Paulo, do falecimento do meu amigo, o farmacêutico Batista. Contou-me que ele atendeu na farmácia um homem portador de um panarício na mão direita. Abriu o abcesso, drenou o pus, mas houve intenso agravamento do caso, como era relativamente comum naqueles tempos, quando não havia ainda os antibióticos, tendo o homem ficado com a mão inutilizada por contraturas nos dedos. Voltou depois para dizer desaforos ao farmacêutico, esperou-o numa emboscada e o assassinou a facadas.
Voltei a Gravatá trinta anos depois e soube que a maioria dos amigos que lá deixei havia falecido ou se mudado e que Mané do Vigário se casara com a viúva de batista, seu ex-patrão.
Após três anos resolvi de uma vez vir para São Paulo, como bom baiano. Um viajante de laboratório acabou me convencendo e me aconselhou a ir para alguma cidade da Alta Paulista, um região onde havia várias cidades surgidas, por assim dizer, do dia para a noite, zona rica de café, povoada por japoneses, gente que não regateia pagamento. As cidades de lá- me informaram- cresciam rapidamente e eu não iria me arrepender.
Levei minha mulher, grávida do nosso segundo filho, para Muriaé, com meu filho de um ano de idade, pois nessa cidade do interior de Minas, meu pai trabalhava no seu cargo de Fiscal do Imposto de Consumo. Dirigi-me então para São Paulo para tentar a vida. E certa manhã, desembarquei em Marília que, pelo que me disseram, era uma cidade que aparecera em poucos anos e se espalhara rapidamente. Possuía já prédios de apartamentos , crescendo a cada dia.
Lá , encontrei colegas de turmas estabelecidos, lutando com unhas e dentes para sobreviver, pelo que, me disseram, acabou com os últimos entusiasmos que ainda mantinham. A zona era rica, de fato, mas, como acontece sempre nestes casos, há atração de gente de toda espécie, aproveitadores de todos os tipos, de todas as profissões, médicos, inclusive. No que dizia respeito a meus colegas, a situação era simplesmente vergonhosa. A maioria desses profissionais tinha seus “paqueiros”, indivíduos que eram encarregados de atrair clientes, ganhando por comissão de porcentagem dos honorários médicos, não importando quais os expedientes que usassem. Nas estações ferroviárias e rodoviárias, nos hotéis, nas estradas , nas ruas, lá estavam os “paqueiros”, tentando adivinhar quem tinha cara de doente e estava procurando médico. Era aquela correria, uns passando à frente de outros, indagando, aconselhando, puxando pelo braço, assim me contou um dos tais que me foi apresentado por um dentista….
Um colega me contou que um deles, particularmente ousado na sua atividade, passou por um consultório e, na entrada da sala de espera, pegou uma pessoa que chegava para se consultar, chamou-o de lado e procurou convencê-lo a não procurar aquele médico dizendo:
-Quase matou minha mulher! Meu filho então, ficou na mão dele uma semana e foi piorando cada vez mais, e só quando procurei o Dr. Fulano, meu filho sarou….Olha, para o seu bem e o aconselho a procurar o Dr, Sicrano, que é o melhor médico da cidade; é meu amigo, cobra barato, dá remédios de amostra. Eu o levo lá e apresento a ele….
Este “paqueiro” foi pego em flagrante numa dessas ocasiões e processado como merecia.
Praticava-se aborto sem a menor cerimônia, coisa vergonhosa naquele tempo. Pequenas clínicas de fundo de farmácia ou consultórios “especializados” com os médicos aborteiros de plantão, eram comuns. Hospitais improvisados e mal aparelhados medravam em toda a região. Operava-se apêndice por qualquer dor de barriga, a torto e a direito. Um dos colegas me escandalizou quando contou de outro colega que, no seu consultório de ginecologia, uma mulher se apresentou com amenorreia (falta de menstruação) há dois meses, pedindo ao médico algum remédio para não abortar, mas ele, sem o menor escrúpulo,fez o exame ginecológico e, juntamente com outros dados, viu que a paciente estava grávida, tendo mostrado ao marido o tumor uterino que outra coisa não era senão o útero grávido. O marido assombrado recebia o diagnóstico:
-É um tumor do útero. É preciso operar.
E logo depois de acertado preço da operação, na sala cirúrgica às vezes improvisada, sob anestesia geral leve, a mulher era submetida a abortamento pela curetagem uterina; em seguida, era feita uma incisão na pele do abdômem, logo suturada. E pronto, ela fora operada de um tumor benigno no útero. O colega que me contou estas barbaridades, era sócio de um bom hospital que me levou a visitar, bem montado e aparelhado. Citou os nomes dos colegas aborteiros, que agiam como criminosos- e efetivamente o eram- dois deles da turma de 1936, a minha turma , da gloriosa Faculdade de Medicina da Bahia.
E assim- naturalmente que havia exceções- uma grande maioria de médicos vivia lutando para enriquecer na zona progressista da Alta Paulista e iam conseguindo, entre altos e baixos, muitas vezes com d inheiro sujo, para não dizer criminoso. Era, como diziam, na base do devora para não ser devorado….Voltei para o hotel após essas conversas com meus colegas de turma, pensei bem, tomei “massaranduba do tempo” como diria o matuto pernambucano e resolvi levantar voo, no segundo dia da minha chegada.
Cheguei em Garça, uma cidade perto de Marília. Lá fiquei alguns dias planejando abrir um consultório e em contato com alguns colegas. Vi que a situação era quase a mesma: “paqueiros”, a quem os médicos pagavam 30% de quanto rendessem os clientes “paqueirados” e as tais clínicas populares, onde uma certa quantia mensal dava direito à família inteira (pelo menos nos anúncios que os paqueiros distribuíam), a médico , remédios (amostras), operações, partos, etc. Nesses últimos casos havia uma taxa extra a pagar, o que o cliente só sabia quando precisava mesmo de cirurgia e recebia a explicação de que a intervenção cirúrgica necessária não estava dentro do programa do atendimento combinado, ou outra razão , que o cliente engulia e acabava pagando. Continuava tomando “massaranduba do tempo”, quando, tendo notícia do nascimento do meu segundo filho, meu pai me informou que fora transaferido para São Paulo. Arrumei as malas e segui para São Paulo, Capital.
Quando estava em São Paulo, veio a guerra e me inscrevi no Curso de Emergência de Medicina Militar. Após o Curso, fiz um estágio na Formação Sanitária do 5°. Sediado na cidade de Itapetininga. Foram três meses de boa vida, que me deixaram lembranças agradáveis. O comandante do Batalhão, coronel na época, era ótima pessoa, namorador, exigia a presença dos oficiais , inclusive dos médicos estagiários, na praça central da cidade, para ver ou paquerar as moças que toda noite tinham um passeio obrigatório pelos jardins da praça, para ouvir e contar piadas, muitas vezes apimentadas que algumas delas contavam.
Por esse tempo, tive o primeiro contato com um fazendeiro da região e chefe político, conhecido como “coronel” Toniquinho Pereira, que haveria de ser alguém muito presente em minha vida durante anos. O “coronel”, naquele momento, era candidato a presidente do Clube mais elegante da cidade, o Venâncio Aires e, fraudulentamente arranjou um meio de vencer as eleições, fazendo votar quem não era membro do Clube, entre outros, eu e meus colegas estagiários do batalhão, o que fizemos a pedido do próprio coronel fajuto. A política fervia no Clube e Toniquinho, sempre pescando em águas turvas, venceu a eleição. Terminado o estágio, passei uns tempos em dúvida se ia ou não para a guerra, resolvendo afinal permanecer no Brasil. Fui convidado a clinicar numa cidade perto de Itapetininga, chamada Porangaba, que não possuía um mínimo de conforto, como luz elétrica ou água encanada. Lá morei cerca de três anos, quando passei por altos e baixos, fui forçado a me meter na política local, enfrentando sujeira e violência dos políticos, e a coisa ferveu de tal maneira, que achei melhor sair de lá para não morrer de um tiro ou não matar algum político sujo, coisa que havia lá em abundância. A política era na base da violência. Como sempre, havia duas facções: os Cândidos de um lado e o velho Dassás do outro, sempre um por cima e outro por baixo. Como propaganda de sua facção, os Cândidos arranjaram um velho gerador para fornecer luz elétrica á cidade. Foram fincados postes nas ruas, com promessas de daí a alguns dias, Porangaba ter luz elétrica. No dia seguinte, os postes amanheceram arrancados. Novamente foram colocados os postes e organizado serviço de vigilância dia e noite, com homens armados para prevenir novas sabotagens dos inimigos. Afinal, foi marcada a inauguração da benfeitoria. Foram convidados prefeitos da região, deputados e pessoas gradas. Houve churrascos e chopp, banda de música e foguetório. Anoiteceu e, à luz de archotes, os convidados foram em caminhada triunfal até onde estava instalado o gerador e ficaram a postos para o chefe da política, um dos grandes do partido dos Cândidos, ligar a chave que iria acender as luzes da cidade, num espetáculo que, inegavelmente, acabaria com os inimigos. O velho gerador estava instalado com o motor de uma fábrica de farinha, que pertencia a um alemão sempre cheio de cerveja, o qual a uma ordem, acionou a partida. Nada. O motor não pegou. Tentou novamente. Nada. Vistoriaram ligeiramente o velho motor à gasolina e nada acharam demais. Chamaram a toda pressa um mecânico , que trabalhou até mais tarde, mas não descobriu falha. Resolveram examinar o combustível e então constataram que estava cheio de água e areia nos mancais e não sei que mais….Diante de mais este ato de sabotagem, houve um comício, iluminado à luz de velas e pelo que restava dos archotes, arrasando os adversários, onde os palavrões e ofensas pessoais não faltaram.
Porangaba, há anos passados, era o centro de uma zona violenta, onde não havia outra lei a não ser do revólver, dizem os mais velhos da cidade. E nessa lei só havia um artigo, o 38, que era o calibre mais usado, como me disse um juiz de Direito que conheci. Havia assassinatos toda semana e o povo estranhava quando isso não acontecia. E comentavam: “Isto aqui está melhorando! Não mataram ninguém esta semana”. Oscar Avalone, farmacêutico antigo do lugar, que depois se tornou meu compadre, me contou de um tiroteio havido diante de seu estabelecimento. Havia um cidadão conhecido como Pedro Cabo em toda aquela região, pois fora cabo da polícia, temido e odiado por muita gente; falava-se que tinha muitas mortes nas costas, que tinha escapado de morrer inúmeras vezes pelos muitos inimigos que ganhara. Naquele faroeste que era a região de Porangaba, Tatuí, Conchas e outras cidades, ele era um verdadeiro “bad-man”. Certa tarde- contou-me Avalone – chamou-lhe a atenção um desconhecido que desmontou perto de sua farmácia e ali ficou durante algumas horas, de pé junto ao cavalo, atrás do qual parecia procurar esconder-se. Estranhou também que o desconhecido estivesse usando um poncho, apesar do sol quente da tarde. Já começava a escurecer, quando Pedro Cabo subiu a rua, passando defronte da farmácia. Neste momento, o desconhecido tirou de dentro do poncho um rifle, apoiou-o sobre a sela e bang! Mandou dois tiros contra o ex-cabo. Este, ligeiramente ferido, deu um salto e correu para a farmácia, onde entrou já empunhando em cada mão um trinta-e-oito e, abrigado pela porta, procurou localizar seu inimigo. Um terceiro tiro foi disparado pelo homem do poncho, também sem resultado. Então Pedro Cabo, por sua vez, mandou bala. O outro ainda atirou mais algumas vezes, sempre revidado pelo adversário que, no entanto, resolveu dar por fracassada a emboscada. Saltou sobre o cavalo e disparou pela rua afora, logo desaparecendo. Pedro Cabo remuniciou as armas e olhou a rua, onde começava a juntar gente.
Oscar, encolhido atrás do balcão, assistia ao bang-bang aterrorizado. Perguntado, Pedro Cabo nunca soube dizer quem seria o pistoleiro que o emboscara em plena cidade. E quem saberia? Eram tantos os que desejavam matá-lo! Na farmácia, até a época em que morei lá, Oscar Avalone mostrava a quem quisesse ver, as marcas dos tiros de rife na porta da farmácia.
Era esse o clima de faroeste, embora mais abrandado, que encontrei na cidade onde os “coronéis” mandavam e desmandavam, Contam mesmo que em outras cidades, em algum bar da periferia, quando alguém, virando seus copinhos de pinga, dizia que era de Porangaba ou Tatuí, os circunstantes iam logo se despedindo e saindo de mansinho. Naquela época, quando conheci a cidade, vi crimes horripilantes, marido degolando a mulher à navalha, facadas a tiros por dá-cá-aquela- palha, como da vez em que chegou um novo delegado de polícia. Viajei com ele no ônibus e, no papo que vínhamos batendo na viagem, falei-lhe da desordem que ainda reinava ali na região, e nas histórias de verdadeiro faroeste que contavam de tempos passados, em que valiam mais as armas que outros argumentos, quando todos , se não exibiam abertamente sua artilharia, não faziam questão de esconder o cano longo do 38 que espiava pela aba do paletó….
-Bem, – achei por fim- mas agora tudo está relativamente calmo. Tudo isso é coisa do passado.
Ele achava graça naquilo tudo que lhe contava e o ônibus chegou ao ponto, No centro da cidade, o sargento comandante do destacamento veio recebê-lo e cumprimentá-lo.
-Doutor, – disse ele, quando descemos do veículo – já tem serviço para o senhor. Um caso de homicídio, precisamos ir lá urgente, vamos levar o médico porque tem lá também um com ferimento grave, pelo que me disseram.
O delegado me pediu que o acompanhasse e assim fiz. Joaquim Quinzote, dono de uma venda no sítio, por motivo banal, metera a peixeira no peito de um freguês. Ao invés de um, encontramos dois mortos e um ferido grave.
A autoridade policial que acabava de chegar, mostrou-se , após pouco tempo, um homem violento, indigno para o cargo. O povo acreditava que ele devia ter algum parafuso frouxo na cabeça e com razão, pois os atos que cometia eram característicos de um psicopata.
Certa vez, numa festa de padroeiro de bairro, que os habitantes dali comemoravam com festejos populares, missas, quermesse, leilões e danças, ele compareceu com a namorada, para tomar parte na festa. Havia um animado leilão de prendas, frangos e leitões assados, tudo em benefício da capela. O delegado compareceu ao leilão e tomou a frente dos arrematadores das prendas, frangos e quartos de leitoa que eram exibidos. Depois, pediu que fossem receber a importância devida no dia seguinte, na sua casa. Quando apareceram os cobradores, ele os escorraçou, com ameaça de metê-lo todos na cadeia.
Parecida com esta, ele fez várias ainda. A última foi no bar do pai da namorada onde estava hospedado sem nada pagar ao pobre comerciante. Convidou uns frequentadores do bar para entrarem na sala e começou a beber, obrigando os presentes a fazer o mesmo.
Dizem as testemunhas que ele não se achava muito bêbado, quando tirou o revólver, abriu o tambor, retirou todas as balas dizendo:
-Vamos agora ver se todos são homens ou não. Colocou uma bala no tambor, fê-lo girar várias vezes e fechou-o em seguida.
-Pronto! –anunciou- Agora ninguém sabe onde está a bala! Vamos ver quem tem coragem de apontar para a cabeça e puxar o gatilho! Ofereceu a arma para alguns dos bêbados presentes, mas nenhum estava tão bêbado a ponto de aceitar o convite.
-Ninguém aqui tem coragem?
Naturalmente ninguém tinha.
-Cambada de covardes! Gritou- vejam , eu não tenho medo!
Apontou o revólver para a própria cabeça , puxou o gatilho, a arma disparou e ele caiu morto.
Apesar de dizerem que a época do faroeste em Porangaba já havia passado, vi e enfrentei cenas de violência. Tive que entrar na política, como já disse , e tive minha casa e minha vida ameaçadas por conhecido desordeiro, conhecido pelo apelido de Táu, a serviço dos Cândidos. Passei a andar armado, esperando poder defender minha vida e minha família de alguma agressão. A coisa chegou a tal ponto que minha mulher, amedrontada, me intimou:
-Ou mudamos daqui ou vou embora sozinha mesmo para São Paulo e fico por lá com meus filhos. Diante deste ultimatum, e para não acabar matando alguém ou sendo morto por alguma bala à traição, vendi minha casa e me mudei. Um amigo me recomendou Angatuba, onde não havia médico. Cheguei e achei-a simpática, num dia de festa do padroeiro, o Divino Espírito Santo.
Angatuba será o fim-de-linha para mim, pois no momento em que bato estas linhas, já lá vão mais de quarenta anos de residência, de clínica formada e firme, uma infinidade de afilhados, (anotamos perto de duzentos e perdemos a conta), muitos deles com meu nome, em honra ao padrinho. Por isso mesmo, o nome de Renato já está um tanto comum por aqui, mas constitui mesmo uma variação da maioria dos Josés, Franciscos, Donizetes, Aparecidos e vários outros comuns. Ao lado de uma infinidade de Terezinhas, Terezas, Maria Aparecidas, estão os nomes que os compadres acharam bonitos ou estavam na moda, como os nomes dos meus filhos ou netos: Jean-René, Damáris, Priscila, Marcel. Curiosamente, há um número enorme de Teresa de Jesus oliveira e também muitos Aparecido Donizete de Fátima, numa homenagem conjunta a Nossa Senhora Aparecida, padre Donizete e Nossa Senhora de Fátima.
Encontrei em Angatuba muitos amigos incondicionais. Mas, como não faço exceção à regra, tive meus períodos de sofrimento enquanto a terra foi dominada por aquele mesmo “coronel” fajuto, eleito transversalmente presidente do clube em Itapetininga, fazendeiro semianalfabeto, que chegou a ser eleito deputado estadual, depois deputado federal. Esse famigerado “coronel Toniquinho Pereira não levou em conta tudo que fiz por ele, pois foi eleito deputado federal graças à votação maciça que lhe consegui em Porangaba. Ele me fez comer o pão que o diabo amassou, quando houve um processo policial-militar contra seu irmão, então prefeito da cidade, que havia recebido suborno para dispensar jovens convocados para o serviço militar. Apesar do meu testemunho no inquérito ter sido anódino, o “coronel” achou que eu devia ter defendido seu irmão e, por isso, começou a me perseguir sem trégua.
Mas, como eu esperava, o Bem venceu o Mal e ele logo caiu no ostracismo político e social, foi derrotado nas eleições, voltando à sua situação de fazendeiro caipira, podendo gritar e perseguir à vontade seus peões e empregados.
Tardou, talvez, mas não deixou de comparecer diante de Deus para prestar contas do que fez de bem na terra e de suas maldades que, pelo menos contra mim, foram muitas.
Conheci Castelo Branco logo que desci do ônibus, quando cheguei à cidade, disposto a morar aqui. Ele, sabendo que eu viria definitivamente, por intermédio do dono do hotel, foi-me esperar no ponto do ônibus.
Alto, magro, olhos claros, cabelos quase totalmente brancos, boca que era apenas um traço firme, lábios finos. Pareceu reconhecer-me logo, apesar de nunca me ter visto e foi perguntando:
-Dr. Renato?
Apertou-me a mão calorosamente.
-Sou Elzeário Castelo Branco, primeiro-tenente farmacêutico reformado. Seja bem vindo a Angatuba!
-Muito obrigado , tenente! – respondi- Sou Renato Ribeiro , também, primeiro-tenente médico, da Reserva de segunda linha.
-Ótimo, tenente! – retrucou ele, sorrindo amavelmente – Vamos nos entender bem, foi bom ter chegado logo. Temos um caso aqui, só estava o esperando!
-De que se trata?
-Um aborto, com muita hemorragia. Me chamaram para atender a mulher, mas como soube que o senhor estava a caminho neste ônibus, apliquei somente uma injeção contra o sangue.
-Bem, vamos então já ver isso, – respondi, enquanto ia sendo levado para o hotel. –Mas não trouxe meus comigo meus instrumentos…
Deixei as malas no Hotel Ouro Branco e fui com o farmacêutico ver a doente, em local pouco afastado da cidade. Era de fato um abortamento de três meses, a mulher desfalecendo com a perda de sangue. Castelo me auxiliou no que pôde. Mandei-o fazer um sedativo poderoso na falta de anestesia e fiz imediatamente a curagem digital, na falta de curetas, isto é, a retirada dos restos ovulares com os dedos. Manobra trabalhosa para o parteiro e dolorosa para a mulher, mas, felizmente, com a retirada do aborto, a hemorragia cessou. Fiz a prescrição dos medicamentos que eram necessários e nos retiramos.
-Muito bem, tenente! –aplaudiu meu companheiro, que a princípio me tratava por tenente, aquele que seria o melhor amigo que tive nesta cidade – Começou bem. Parabéns!
No dia seguinte me apareceu outro caso de abortamento, mas, como soubera que o médico que residia na cidade adoecera gravemente e fora para São Paulo, deixando seu consultório fechado, com a dona da casa consegui a chave do mesmo, retirei por empréstimo alguns instrumentos, a fim de atender a paciente com mais eficiência.
Na cidade havia duas farmácias, ambas antigas. Uma delas, Farmácia Espírito Santos, era propriedade de Castelo Branco, de sociedade com sua colega Lucinda, e outra mais antiga, do farmacêutico Públio de Almeida Melo, seu Pube ou seu Público, como era às vezes chamado pelo povo do sítio. Os três profissionais faziam o que podiam, atendendo à freguesia que não queria ou não podia consultar médico.
Castelo Branco, alguns dias após minha chegada, foi procurado pelo empregado do conhecido sitiante chamado Acácio, famoso pão-duro, sobre quem corriam fatos e “causos” verdadeiros ou falsos, mas todos verossímeis diante da fama que tinha o homem. Conheci-o bem, pois ele depois se tornou meu cliente. Ele próprio dizia que tinha em casa o dinheiro estritamente necessário para a compra dos alimentos para a família. Todo o dinheiro que recebia, depositava imediatamente nos bancos em Itapetininga. Por isso- ele mesmo me contou- certo dia, precisando de dinheiro para a compra de uma ponta de gado, foi ao banco. Seu aspecto era de homem trabalhador da roça, vestido de roupas surradas, barba de vários dias por fazer, mãos sujas. Ninguém diria que ali estava um fazendeiro abastado. Procurou um dos caixas, avisou que precisava de um dinheirinho…
-Ah, sim – interrompeu o caixa, pensando tratar-se de alguém que precisava de algum empréstimo. – Dirija-se ao gerente, ali.
Ele dirigiu-se ao gerente. Permaneceu em pé diante do funcionário, que se dignou apenas a olhá-lo ligeiramente, folheando uns papéis, anotando aqui, ali. Alguns minutos depois , perguntou-lhe o que queria.
-Óia, sô gerente, é qu´eu to percisando de um dinheirinho…
-Empréstimo? –perguntou o gerente olhando o de cima a baixo e calculando profissionalmente quanto seria o pedido e avaliando as possibilidades do mal ajambrado cidadão pagar a dívida que desejava contrair.
-Não, nhô, num é dinheiro emprestado qui eu quero…
-Eu tenho um dinheiro aqui no banco e queria retirar somente um pouquinho, mode pagá uma boiada…
-Ah…O senhor tem um pouco de dinheiro aqui…E quer retirar….Quanto?
-Só um pouco….Preciso de quinhentos contos…
Ao ouvir a referência daquela quantia colossal para a época- contou-me ele dando uma gargalhada, gozando com a lembrança do fato – o gerente saltou da cadeira e correu para ele oferecendo-lhe uma poltrona, cheio de salameleques:
-Ah, meu caro, sente-se por favor…Vou mandar vir um cafezinho…
Fomos até o sítio de Acácio, num velho fordeco , único carro de aluguel que havia na cidade, pertencente a João Orsi, um velho padeiro italiano. A casa era um pardieiro caindo de velho, escorado de paus, o interior condizendo com o exterior: velhos móveis estragados, carcomidos, cheios de bolor, caixontes servindo de cadeira. A mulher dera à luz, mas a placenta ficara retida, apesar dos benzimentos, chás e poções das parteiras. Em último caso, o marido resolveu apelar para o farmacêutico mandar algum remédio para resolver o problema. Não demorei a extrair manualmente a placenta retida, apliquei a medicação indicada para evitar perdad sanguíneas , examinei a criança, tudo bem. Com a fama que o homem tinha de pão-duro, já previa dificuldades para receber meus honorários devidos por trabalho de especialista, a domicílio a vários quilômetros de distância. Perguntado, dei o preço de uma quantia que achei justa, sem ser excessiva. Para surpresa minha, Acácio tirou do bolso um lenço donde extraiu um maço de notas, pagando-me integralmente, sem regatear. E ainda nos ofereceu um cafezinho adoçado com caldo de cana.
Estive alguns meses morando no Hotel ouro Branco, de Ernesto Taciolli e, enquanto procurava casa, aluguei uma sala no mesmo hotel para o consultório e ali trabalhei enquanto não trazia da família. Enfrentei logo uma epidemia na cidade, que levou para a cama quase toda a população, trabalhei dia e noite atendendo consultas e chamados. Até que também fui atingido, ficando alguns dias na cama, ardendo em febre. Castelo Branco foi meu médico.
Lembro-me de certa noite de tempestade com relâmpagos e trovôes ininterruptos, a cidade no escuro , como acontecia nessas ocasiões. Eu me achava sentado na área da frente do hotel, em companhia de nhô Joaquim, pai de dona Jaça, mulher do dono do Hotel. Faíscas riscavam o céu negro e os trovões faziam tremer os vidros das janelas.
-Gosto de ver este espetáculo. – disse eu ao velho Joaquim Mineirão, como ele era conhecido. –Acho muito bonito ver os relâmpagos riscando o céu.
O velho, acabando de enrolar seu cigarro de palha, balançou a cabeça. –Olha, -recomendou ele – o senhor não deve ficar olhando os “fusilo” tão de frente. Sabe que pode ficar cego?
-Que nada, seu Joaquim! Respondi –Tudo isso é bobagem, não creio nisso.
-Pois eu acredito, seu doutor. Nessas noites de tempestade é que o cão anda solto, saído dos infernos! Por isso acontece muita coisa ruim nessas noites.
-Tudo crendice, seu Joaquim.
-Pois pra mim mesmo aconteceu, sim senhor. Foi numa noite assim, com o cão solto, que eu quase matei um homem num duelo!
-Não diga! Quer me contar como foi ?
Nhô Joaquim gostava de contar “causos” e eu de ouvi-los, pois ele tinha sempre coisas interessantes para contar do seu passado como peão de boiadeiro, conduzindo manadas desde o Rio Grande para outros Estados, principalmente Minas Gerais. Fazendo gestos, pitando seu cigarrinho de palha, iluminado fantamasgoricamente pala luz fugaz dos relâmpagos, o velho mineiro, alto, seco, com saudades de Uberaba, sua terra natal, ofegante e bem falante, contou : Era uma noite parecida com esta, os fusilos um atrás do outro, sem parar e a chuva fina caindo como garoa impertinente, compunha o cenário daquele lugar, nos Pampas do Rio Grande. Abrigados da chuvinha aborrecida numa barraca improvisada com lona, ao redor da fogueira, Joaquim Alves de Melo, o Mineirão, no vigor de seus trina e poucos anos, curtido de sol, vestido como os gaúchos que o acompanhavam, cerca de vinte homens, descansava com seus companheiros, ouvindo ali perto o mugir das mil e tantas cabeças de gado que iam conduzindo a caminho de Sorocaba, já fazia cerca de trinta dias de viagem. À roda da fogueira, agasalhados nos seus ponchos, passando o chimarrão de boca em boca, entre risos e conversas, aguardavam o momento de se recolherem sob as tendas de lona armadas ali perto. Em dado momento, aproximou-se dele um dos peõs que guardavam o gado, acompanhado de um negrão de quase dois metros de altura, que ninguém conhecia.
-Oi, Mineirão! –falou o peão – Este homem diz que quer falar com você.
-Apois fale! –respondeu Joaquim – Vá se assentando, moço. Óia, o chimarrão tá no ponto. Se sirva!
-Brigado, não quero – respondeu o outro. –Mecê, por um acauso, é o Joaquim Mineirão?
-Sim, -respondeu Joaquim –Sou Joaquim Alves de Melo, conhecido por Mineirão. E mecê, quem é?
O outro deixou cair o poncho, num rápido gesto.
-Apois saiba que eu sou filho de Juca Peixe. Lembra dele?
Joaquim riu, mostrando os dentes falhados, passou a cuia para diante e levantou-se.
-Me alembro, sim! Então ele era o seu pai? Nóis tivemos uma rusga num baile e tivemos uma briguinha que durou mais de meia-hora, o soco e pé-d´ouvido! Era valente seu pai, mas no fim da luta peguei ele e joguei no rio, que é lugar de peixe !
Os peões em volta riram, mas os risos cessaram de repente quando o negrão puxou uma faca.
-Mecê tem uma faca, Mineirão? –perguntou ele –Apois segure ela, porque agora vamos brigar, não a pé d´ouvido mas de cutelo na mão! Joaquim deixou também cair o poncho, os homens quiseram intervir, mas ele não deixou. Os relâmpagos iluminavam a cena, com luz cegante.
-Tá certo. –retrucou ele –Se é assim que mecê quer, vamos resolver esse assunto.
-Vamos, sim; meu pai pediu que se eu encontrasse mecê, lhe desse um pé d´ouvido!
-Vamos, ali perto tem o rio com uma pinguela…Vamos lá.
Todos se dirigiram para o rio estreito que passava ali perto, com dois troncos à guisa de precária ponte. Os dois contendores subiram para a pinguela, cada um empunhando seu cutelo, equilibrando-se como podiam. O duelo começou, iluminado pela luz dos fusilos, cada um procurando atingir o outro. Joaquim foi logo atingido por um golpe no braço esquerdo quando se desviava de um golpe do adversário, vibrado de baixo para cima. Movimentou-se numa manobra de defesa, procurando se equilibrar nos dois roliços paus da pinguela e revidou. O adversário equilibrou-se no contra golpe e foi então que recebeu a faca na barriga, num golpe riscante.
-Tenho certeza que foi somente um cutucão – explicou o Mineirão.
O outro ainda tentou se segurar, mas perdeu de vez o equilíbrio e foi parar nas águas barrentas do pequeno rio que corria lá embaixo, engrossado pelas últimas chuvas. E desapareceu…Voltaram todos para a barraca comentando o acontecimento.
-E soube depois do negrão, nhô Joaquim? – perguntei.
-Não, nunca mais soubemos do tal, se se afogou ou não. De manhã, eu os companheiros o procuramos durante muito tempo rio abaixo, mas não vimos nem sinal dele.
E riu, mostrando as gengivas quase desdentadas:
-O cutucão da faca foi pouca coisa e ele deve ter-se salvado depois de ter caído no rio, como aconteceu ao pai. E filho de peixe sabe nadar….
Foi numa outra noite tempestuosa que passei por verdadeira aventura no campo profissional, de que nunca me esqueci. Estava me acomodando para dormir quando me entregaram o seguinte bilhete:
“Minha mulher não quer por toda lei sair de casa porisso quero que o senhor me mande um remedinho. Ela está com as coisa atrazada mas agora de repente as coisa apareceu meio demais, com dor de barriga. Já tomou um regulador que seu Públio mandou. A mãe diz que é assim mesmo, desde moça que La não tem as coisa certa, sempre atrasa. Mande um remédio que não seja forte porque ela não aguenta remédio forte, está muito fraca”.
O portador do bilhete era um vizinho da paciente. Expliquei-lhe que, pelo visto, era um caso de aborto. E ele me perguntou:
-E como pode ser caso de aborto se ela não está grávida?
-Se ela não está grávida, claro que não é aborto.
-Então o senhor poder passar um remédio para suspensão, porque tenho certeza que ela não está “gorda”.
-E como é que o senhor tem essa certeza, se ela não é sua mulher?
-Não é, mas tenho certeza.
-Ela está com as “coisa” atrasadas, como diz o bilhete do marido e, num caso de menstruação atrasada, a presença de hemorragia pode muito bem ser algum aborto.
O homem deu uma risadinha.
-É…mas não pode, seu doutor. Olhe, vou dizer uma coisa ao senhor. O marido dela é meu amigo e me contou que os dois não se dão muito bem e ele me disse que faz já um ano que…que não tem nada com ela, compreende? É , o senhor compreende o que eu quero dizer, não?
-Bem, -tornei eu – o marido…não é? O senhor parece que conhece bem o caso, né? Ela é sua parenta? Não? E como sabe disso?
-Ele me contou….assim pelo alto…
O homem ficou gaguejando, meio confuso, quis explicar melhor, mas não pôde. Diante disso, fiz ainda umas perguntas que interessavam para elucidar o caso a distância e, por fim, convenci-o de que teria que ir à casa da paciente para examiná-la, já que, “por toda lei”, ela não queria sair de casa. E lá fomos, debaixo do aguaceiro, relâmpagos e trovões, deslizando e atolando pelas estradinhas, esburacadas da Fazenda mandaçaia, já levando comigo o material para uma possível curetagem uterina e a medicação de urgência. Examinei a paciente que se achava em estado mais grave do que pensei a princípio, com hemorragia aguda por abortamento incompleto. Tomei imediatamente as providências que o caso exigia e esvaziei a cavidade uterina de seu conteúdo, usando pinças e curetas, um pequeno feto de idade calculada em três meses de gestação. Já desconfiando do que se passava, ou por feliz inspiração, escamoteei o fetinho e guardei-o, antes que as mulheres que estavam no quarto o visse. Logo que terminei a intervenção, o marido entrou no quarto e me perguntou num cochicho:
-Ela estava grávida, doutor ? Foi aborto ou o que foi?
Fiquei por um momento sem saber o que responder porque já fora informado por ele mesmo que “há um ano não tinha nada com ela”, logo…
-Bem…-falei meio atrapalhado –Vou fazer um exame de sangue para saber, mas parece que eu estava enganado…
Ele ainda insistiu:
-Mas na operação o senhor não viu alguma coisa?´
-O que vi foi uma inflamação do útero que provocou regras mais abundantes.
-Bem, continuou o marido num cochicho –eu queria era saber de tudo….Estou desconfiado desta mulher…Faz muito tempo que nós não dorme junto….
Procurando não ser percebido, guardei o feto numa compressa dentro da maleta. Na sala, o vizinho que fora me chamar, cochichou-me ao ouvido:
-Ela estava mesmo grávida, doutor? Foi aborto?
-Fique quieto aí. Você não sabe que médico tem que guardar segredo de tudo que sabe? Não posso dizer nada, tenho que guardar segredo.
Quando ele me trazia para a cidade dirigindo o jipe, acabou-me confidenciando:
-Óia aqui, doutor…Se não foi aborto, muito bem, mas eu desconfiava…O senhor sabe, né ? Eu e ela…quer dizer, o marido não ligar pra ela há muito tempo, aí eu passei uma cantada nela…Bom, mas se não foi gravidez;;;
-Olha amigo, -respondi- já havia desconfiado de tudo, pois você me disse que ela e o marido estavam separados. Mas ela estava grávida e isso foi um aborto!
-Mas, -assustou-se o homem –O marido ficou sabendo? E a criancinha? Onde ficou?
-Nem o marido nem ninguém ficou sabendo de nada. –respondi sorrindo –Desconfiei que ia haver o diabo naquela casa se o marido soubesse que ela estava grávida e estava tendo um aborto.
Abri a maleta e retirei o feto embrulhado na compressa e lhe entreguei:
-Aqui está o seu filho. Enterre-o.
Dias depois ele me apareceu no consultório.
-Olhe, doutor, vim lhe agradecer pelo que fez e quero lhe dar uma gorjeta.
Tirou do bolso uma nota de baixo valor estendendo-me em minha direção.
-Um momento, amigo, -retruquei-Não aceito gorjetas. O marido da paciente me pagou pelo serviço. Guarde sua gorjeta.
-Então vou lhe trazer um presente, aceita?
Voltou no dia seguinte trazendo um franguinho:
-Está no ponto de molho, doutor…..
A política em Angatuba fervia como sempre, durante os meus primeiros anos na cidade. Não demorei muito para tomar conhecimento de que Toniquinho Pereira, o famoso “coronel” , era o “dono” da cidade e aqui era o chefe supremo que mandava e desmandava, principalmente desmandava. Contaram-me que, há tempos atrás, as eleições eram na base de ameaças do chicote, do cabresto. Dinheiro corria solto comprando votos, presentes de vestidos, calças, sapatos, pagamento de passagens para viagens, promessas de emprego….Havia gente sabida que tomava dinheiro de ambos os lados, prometendo votar em quem lhe pagava no momento. Na véspera da eleição, o “coronel” mandava matar vários bois e havia o que chamavam os “viveiros”: numa casa ou grande sala se acolhiam os “votantes”, que vinham sempre acompanhados de toda a família, até os cachorros de casa. Ficavam ali acantonados, dormindo em esteiras, comendo à vontade carne picada e cozida com batatinha, tirando a barriga da miséria. Os caminhões descarregavam os votantes que, imediatamente, se dirigiam para os viveiros , a fim de se empaturrarem de carne. Essa comida, cozida em quantidade, era levada ao fogo em bacias grandes, sobre fogueiras. Contam os gozadores que, durante a noite, os pais acordavam os filhos:
-Vamos, pessoal! Acorda pra comê!
No dia da eleição, o coronel com seus capangas ocupavam as entradas da cidade e cada eleitor que chegava era interpelado, ameaçado, às vezes até revistados. Rasgavam as cédulas que encontravam e entregavam a do coronel. Um deles, querendo dar uma de sabido, contou-me Zé Dentista, mostrou o envelope com a cédula dentro que recebera do coronel e perguntou:
-Mas seu Toniquinho, para quem eu vou votar com esta cédula fechada no envelope?
-Ao que o coronel respondeu, com sua voz de falsete, fielmente imitada por Zé Dentista:
-Não precisa sabê home…Na hora mecê tira a cédula que tá aqui e é só ponhá dentro do envelope qui vão lhe entregá lá na seção.
-Mas…..-o votante quês saber- o voto não secreto?
-Isso mesmo! –respondeu o famoso coronel – O voto é secreto, por isso mecê não precisa saber em quem vai votar.
A família Pereira há muitas décadas vinha dominando Angatuba; seu eleitorado naqueles tempos era semianalfabeto, a Prefeitura local era uma herança que vinha passando sempre de um para outro Pereira. Do outro lado, e sempre por baixo, o outro chefe político vinha lutando bravamente contra as forças do “coronel”, com seus poucos recursos e nesta luta valia tudo, de parte a parte, todos os meios, legais ou ilegais.
-Os fins justificam os meios – disse-me Levi e eu concordei com ele. Vencia sempre Toniquinho e aí começavam as festas, os rojões e foguetões de assobio, os insultos de toda ordem contra Levi e seus correligionários, as ofensas pessoais, os pasquins anônimos, os “judas” dos adversários, as ameaças de espancamentos, tudo isso organizado e efetuado pelos cupinchas, que eram os partidários de Toniquinho, contra os pescoceiras, que acomapanhavam Levi Lisboa. Mo meio da ralé cupincha, encarregada das manifestações mais baixas e grosseiras, estavam indivíduos de melhor aparência, às vezes só aparência mesmo. Entre eles havia bancários, fazendeiros e professores incitando bêbados e desclassificados à provocação dos pescoceiras.
Nestas baixezas, nem se poupava o padre que, certa vez pronunciou , embora veladamente, simpatizante com o lado do Levi. Por isso ganhou várias ofensas dos bêbados e, certa manhã, amanheceram na sua porta umas malas amarrotadas com seu nome: um claro convite a que ele deixasse a cidade.
Em pleno fervor pré-eleitoral, Toniquinho , que conseguira ser deputado estadual, mandou-me chamar e me disse:
-Óia, vou fundá aqui um Posto mode atendê as criança e vou nomear você pra médico dele….
Ele era assim. Afirmava que era ele próprio quem fazia as nomeações dos funcionários do Estado e era quem demitia também. Infelizmente era verdade no que tocava às demissões. Vi muitas vezes um simples telefonema seu, para que fosse promovido ou demitido algum funcionário, que não dançava conforme sua música. Assim, nas graças dos governantes flexíveis e interesseiros, fazendo jus ao prestígio que tinha como deputado, foram removidos, transferidos ou demitidos, delegados e outros funcionários da Polícia, médicos, professores, sem falar nos funcionários subalternos. Era a época em que os deputados dispunham de polpudas verbas para, com elas, adubarem seu prestígio, prometendo ou fazendo obras públicas, fazendo doações reais ou fantásticas, ou simplesmente embolsando o dinheiro, como toda vida se fez e vai continuar fazendo. E ele era useiro e vezeiro nesta trampolinagem, como me disseram uma vez na Secretaria da Saúde em São Paulo. Após as “doações”, as notas frias apareciam justificando as despesas e todo mundo sabia como ele era hábil em manusear estas notas. Com parte dessas verbas, preparando-se para reeleição, começou a construir prédios para Postos de Puericultura, à sombra da propaganda intensiva , em Angatuba e mais duas outras cidades da região.
Em Angatuba, como não podia deixar de ser, as obras começaram às vésperas da eleição. O primeiro comício foi feito nessas obras, sobre os alicerces, onde foi explicada a finalidade do Posto que seria erguido ali, dentro de poucos meses. Os oradores eram eloquentes nessas explicações diante do povo embasbacado: prometiam saúde para seus filhos com médicos dias e noite atendendo ao Posto, distribuição de leite e remédios gratuitamente, tudo graças ao deputado que iriam reeleger. Passaram as eleições, o tal foi reeleito e as obras pararam. A farsa continuou ainda às vésperas das novas eleições, as paredes foram novamente trabalhadas, chegando à altura de madeiramento do teto, quando então pararam as obras porque as eleições passaram. Em São Paulo, um dos assessores do Secretário da Saúde me disse: “Garanto-lhe que, com mais umas duas ou três eleições, esse prédio será concluído”….Era esse o clima de gozação que reinava em São Paulo, com o nome de Toniquinho Pereira, deputado que ninguém levava a sério,assunto até para piadas, principalmente quando um jornal publicou uma foto dele dormindo a sono solto na Assembléia. Nunca abrira a boca para falar coisa alguma na tribuna, apenas o fazia para bocejar. E não tardou a aparecer outra piada no mesmo jornal: deputado Antônio Vieira Sobrinho (o verdadeiro nome do “coronel”) levantou-se ontem na Assembléia e falou três horas! Aquilo seria uma novidade, pois ele, homem de poucas letras, como se dizia, só abria a boca para bocejar, Mais adiante a nota explicativa: a então deputada Conceição da Costa Neves fez um sinal para ele e perguntou-lhe:
-Coronel, quer me dizr, por favor, que horas são?
-Ele consultou o relógio e rerspondeu:
-Três horas!
Planejando candidatar-se à Câmara Federal por São Paulo, desde o começo calculava as possibilidade de eleição e, em conversa com ele sobre o assunto, lembrei-lhe certo dia:
-Coronel, por que o senhor não vai a Porangaba e pede voto a Dassás?
-Dassás deve mesmo ter mesmo muitos votos por lá. –respondeu-me ele –Mas apesar dele ser meu parente, estamos com as relações cortadas.
-Não seja por isso, – retruquei –Dou-me muito comele e estou disposto a ir lá, para ver o que ele pode fazer com a sua candidatura.
Daí a uns dias fui a Porangaba e, com o velho político Dassás , marcamos o dia em que Toniquinho poderia ir lá. No dia marcado, fomos de avião teco-teco de propriedade do coronel até Porangaba, que nos esperava com festas, bandas de música e foguetório. Eu fiz os discursos, já que o homenageado não sabia falar duas palavras. Em seguida, ele foi prometendo emprego para todo mundo e, a pedido, lanche escolar, uniforme para a banda e para o culbe de futebol, distribuiu balas, brinquedos e dinheiro a quem lhe pediu. No banquete que se seguiu, ele e Dassás oficialmente fizeram as pazes e apertaram-se as mãos, sob as palmas dos comensais. E o chefe político lhe prometeu:
-Disponho aqui de quase mil votos, mas posso lhe garantir uns oitocentos com certeza!
O candidato não recebeu oitocentos, mas quinhentos votos reforçaram sua votação e isso o elegeu. Cresci no julgamento, e ele certa vez, reconheceu que fora aquele meu esforço que o elegera. Mas, a sua maldade não tardaria a se manifestar contra mim.
Um dia, apareceu em Angatuba, um coronel do Exército acompanhado de outros oficiais. A notícia correu de boca em boca: vinham abrir um inquérito policial-militar contra o prefeito Chico Pereira, irmão de Toniquinho, e mais outras pessoas da cidade, aproveitando-se do cargo, haviam concorrido para a dispensa de vários convocados, mediante pagamento de polpudas quantias. O prédio do Posto de Puericultura, onde eu era médico-chefe, foi requisitado para funcionamento do inquérito e a primeira testemunha a ser ouvida fui eu. À pergunta do que eu sabia sobre o caso de corrupção que pesava sobre o prefeito, respondi que ouvira dizer e que todo mundo na cidade falava. Bastou isso para que Toniquinho desencadeasse uma série de perseguições contra mim, incluindo calúnias contra minha esposa, esquecendo de pronto todos os favores que me devia…..
Com a força de que dispunha como deputado federal, e contando com funcionários subservientes na Secretaria da Saúde, conseguiu que eu fosse removido para uma cidadezinha nos confins de São Paulo. Logo voltei para Angatuba devido à influência do deputado Araripe Serpa, correligionário de Levi Lisboa.
Achando-se derrotado, Toniquinho mexeu com os pauzinhos e me transferiu para Paranapanema; novo esforço de Araripe Serpa me trazendo para Angatuba. Afinal, o famigerado “coronel” deu sua última cartada, quando Jânio Quadros, governador de São Paulo, atendeu a seu pedido: fui demitido do serviço público com uma simples nota publicada no Diário Oficial. Araripe Serpa, era na assembleia, o homem forte do governador, mas, nem por isso , pôde impedir que se consumasse a maldade do famigerado “coronel”. Alguns dias depois, porém, prevaleceu a influência de Araripe, sendo publicado novo ato me readmitindo e tornando sem efeito o ato anterior; assim , eu me vi reintegrado no cargo. Houve, como sempre acontecia para festejar as vitórias políticas, banda de música, foguetes, discursos. Daí em diante, ainda não aconteceu a derrocada da dinastia dos Pereiras, mas começou a amainar o ranço daquela dominação de coronelismo.
A dominação política ainda prevaleceu, até que uns anos depois, os cupinchas (partido dos Pereiras) foram derrotados e um pescoceira (partido de Levi Lisboa) foi eleito. Os ventos políticos começaram a soprar contra a cupinchada e caiu de vez a dinastia imperante há décadas. Deixei de ser joguete dos políticos, pois, quando se queria saber quem mandava em Angatuba, bastava saber onde eu estava, se em Angatuba, mandavam os pescoceiras, se removido para longe, mandavam os cupinchas.
Graças a Deus terminavam as perseguições contra funcionários, as ameaças, as vinganças contradelegados, professores, médicos. Angatuba desde então, nas mãos de gente moça e esclarecida, tomou o rumo certo para o progresso, deixando para a história e folclore a época feudal dos coronéis caricatos e semianalfabetos….
Os perigos de gravidez se estendem até nos sonhos, cuidado então com eles!…Parece piada, mas encontrei um caso desses. Era uma viúva bem apresentável, de seus trina e poucos anos, gente dita da alta sociedade local, embora seu grau de cultura não fosse lá muito alto. Estava com “suspensão” há quase quatro meses, já tinha tomado remédio de quanto balconista de farmácia havia em Angatuba. Apelara para seu Lara, famoso dono de farmácia em Itapetininga, que lhe preparara um remédio que era “tiro e queda” para suspensão de menstruação, mas, apesar da fama do velho farmacêutico , nada fazia as “coisas” descerem. Procurou-me, por fim, após ter usado uma injeção também infalível, que um famigerado médico que residiu nesta cidade lhe vendeu e aplicou.
Examinei-a. Gravidez de quatro meses.
-Tá louco, doutor! Gravidez nada! Só se for do vento! Sou viúva há um ano!
-As viúvas também podem ficar grávidas, dona…
Ela riu e continuamos a conversar sobre a falta de menstruação. De repente ela bateu na testa, tendo uma lembrança repentina, a que se seguiu uma expressão de aborrecimento no rosto bonito.
-Ah, doutor! Agora já sei o que houve!…Deve ter sido um sonho que tive, deve fazer mesmo uns quatro meses.
-Ahn? Sonho?
-Sim, sonhei com meu falecido marido.
-Não entendi bem…A senhora sonhou….Como é?
-Sonhei com ele vivo, dormindo comigo..Sabe como é, NE?
-Se foi ! Um sonho completo. Não acredita?
-Oh, sim, acredito! Eta sonho danado!
Mas logo fiquei sério e perguntei:
-Olhe, dona Mariana, o que a senhora acredita que eu sou, hein?
A viúva não gostou da minha cara nem da pergunta que fiz, mas aceitou o conselho de fazer, no Centro de Saúde, onde eu era diretor e pré-natalista, os exames necessários. Fez os exames, com positividade para gravidez e depois confessou-me: sonhara de fato com o marido já falecido, mas tinha amantes ocasionais, bem vivos…Após já a minha negação para provocar-lhe o aborto, concordou em fazer regularmente visitas ao Centro de Saúde para eu acompanhar a gestação. A término dela, operei-a de uma cesariana e, a pedido dela, fiz a ligadura das trompas, para que, daí em diante pudesse sonhar à vontade, sem a inconveniência de nova gravidez, vinda de além túmulo…
A propósito dessa ligadura das trompas para estelirização da mulher, houve nesta cidade um famigerado médico, que cobrava das clientes dois preços: se era para não ter filho só durante cinco anos, era um preço, mas se a estelirização teria que ser definitiva, era outro preço, bem mais caro…Até hoje, devido a essa farsa daquele profissional, quando as mulheres me pedem ou aos outros colegas da cidade para operar e “fechar a fábrica”, muitas pedem muito sérias:
-Não quero que amarre somente as trompas, porque depois de cinco anos elas se desamarram. Quero que faça a operação definitiva, como Dr. Fulano fazia!
Uma pergunta que me fazem é se, como muita gente diz pelo sítio, é verdade que as mulheres operadas de ligadura das trompas (estelirização por laqueadura tubária) ficam “diferentes”. Muitos maridos dizem o mesmo e não querem por isso que as mulheres mesmo com grande numero de filhos sejam estelirizadas e se tornem , em decorrência disso, frias sexualmente. A resposta que dou, a única que pode ser dada a esta pergunta é que, se elas já eram frias, continuam frias.
O parto é outra fonte de tabus em todo o Brasil. Na Bahia, lembro-me bem, ouvia minha mãe falar que mulher “parida” (que deu à luz), não pode comer nada a não ser carne grelhada que chamavam lá de “mantinha” e nenhuma outra carne durante o “resguardo”. Em Pernambuco, o resguardo exige a abstenção de peixes, gordura e, sobretudo, de frutas. Isso durante muitos meses. Lembro-me que batizamos uma criança que tinha mais de um ano de idade. Convidei os novos compadres para o almoço em nossa casa. À sobremesa minha mulher serviu compota de abacaxi. A comadre recusou.
-Mas isso aí, comadre, não é fruta, é doce.
-Sim… –ela respondeu –mas é feito de fruta…
O interessante é que ela já estava grávida de outro filho e ainda tinha resguardo do que batizamos, com mais de um ano de idade.
No Sul, a “dieta” tem suas particularidades próprias. A mulher não pode comer arroz porque aparecem-lhe corrimentos, inflamações do útero, pode até ficar tuberculosa. Não come carne de porco ou de vaca, só pode comer carne de franguinho novo, assim mesmo sem gordura e quase sem tempero, uma verdadeira “lavagem” de frango, como dizia dona Maria Rodrigues, minha parteira predileta. Também não pode sair de casa depois do parto, até acabar a dieta que dura quarenta ou quarenta e um dias, conforme o sexo da criança: quarenta e um se foi uma menina. (Essa particularidade foi-me afirmada por uma professora…). Essa dieta se estende pelos dias proibidos, com todo rigor, sob pena de ter uma “recaída” do parto, que é, em última análise, qualquer doença que apareça no pós-parto, desde um simples resfriado, diarreia, vômitos, doenças da pele, tudo levando o rótulo de recaída, devido à quebra da dieta. Vi mulheres que, depois do parto permaneciam fechadas no quarto, onde não deixavam entrar nenhum raio de sol, suando pelo calor excessivo, porque se uma “réstia” de sol ou da lua entrasse no quarto, a criança podia ter o “mal de sete dias”, que, na realidade, é o tétano umbilical.
Lembro-me que atendi a domicílio (não havia nesse tempo o Hospital ainda) uma professora, membro de família muito conhecida e estimada na cidade. Essa senhora mantinha um status de granfina e era mulher de um fazendeiro, também professor. Aconselhei-a que fosse ao Centro de Saúde levando a criança para pesá-la, vaciná-la, etc..
-Nâo. –ela negou – Depois irei, deixe terminar a dieta.
-Dieta ? –perguntei admirado.
-Sim, -ela respondeu – Os quarenta e um dias da dieta. Antes não posso sair de casa, Deus me livre!
-E a senhora acredita nisso?
-Acredito , sim. Olha, doutor, o melhor é não abusar….
A custo, contive o desejo de perguntar se quem falava comigo naquele momento era uma professora diplomada e inteligente, da “alta sociedade” de Angatuba, ou era uma mulher analfabeta trabalhadora na enxada…Ela sorriu benevolente e mudou de assunto. No momento em que escrevo estas memórias, temos em Angatuba um hospital que, embora pequeno, atende todas as gestantes do Município, e que, acredito, já tenham abandonado esses deploráveis costumes de seus antepassados.
A Santa Casa em seu início por volta de 1963, um avanço para o município, conforme considerou doutor Renato em um de seus episódios
Uma jovem bonita, meio chorosa, entrou um dia no meu consultório e, após alguns suspiros, me mostrou um bilhete. Antes de lê-lo, olhei-a e perguntei:
-O que está acontecendo, filha ?
Ela era filha de um dos meus compadres, gente que gostava muito de mim, a quem eu já servira muitas vezes.
-É de meu noivo. –falou ela limpando uma lágrima – Veja o bilhete que ele me mandou hoje. Ele está muito nervoso, queria que o senhor falasse com ele e desse um calmante.
-Vamos ver, filha, o que é que há ? Me conte tudo, vá…
E ela começou a chorar.
-Ele quer se matar, doutor. Veja o bilhete.
Com o papel na mão, tentei consolá-la. Cenas como aquela eram relativamente comuns no consultório, pois eu era confidente de muita gente, principalmente os jovens que, com seus problemas, nem sempre de ordem médica, me procuravam de vê em quando. Li o bilhete escrito a lápis, letra irregular, cheia de erros, aque dizia mais ou menos o seguinte:
“Terezinha, eu soube que você foi ontem no baile da Campininha sem me dizer nada, não adianta negar porque alguém viu você com alguém e esse alguém me contou tudo. Você não devia ir, eu estava viajando e pedi pra você não ir e você foi e namorou de certo com o japonês que não gosto, não adianta negar. Pois você nunca mais vai me ver porque vou me matar; Vou chupar manga e depois beber leite até morrer, você vai ser culpada de tudo, sua ingrata. Seu ex, Jorge.
Sim, o grande veneno que ia tomar, veneno violento, por causa da ingratidão da noiva : manga com leite! O povão acredita que, chupou manga e bebeu leite, é morte certa. Mesmo muita gente de certa cultura, que diz não acreditar nisso, evita esta mistura, por via das dúvidas…Quem sabe lá….É melhor não abusar, né?
Quando havia aqui o Posto de Puericultura, de que eu era Diretor, recebia leite fresco para distribuir às crianças carentes e resolvi, um dia, fazer uma brincadeira com meus auxiliares. Alguém me mandou de presente uma sacola com mangas. Fui até a sala de distribuição do leite, onde havia muitas mães em fila, esperando sua vez. Tomei uma das mangas, cortei-a e chupei-a à vista de todo mundo. Depois pedi que me dessem um copo de leite. Vire-me depois para as mulheres da fila, algumas me olhando espantadas.
-Será que o senhor vai mesmo beber este leite? –Perguntaram.
-Sim, vou, -respondi muito sério –Estou com vontade de morrer, vou beber veneno! Manga com leite!
-Nossa! Será que vai beber mesmo ou é brincadeira?
Uma delas me advertiu:
-Doutor, não abuse!
E outra:
-Vige Maria! Tá doido!
Ofereci o copo:
-Alguma aí quer beber também manga com leite?
-Deus me livre!
Bebi o copo de leite, fazendo um sacrifício, pois não tolero beber leite puro. Uma delas deu logo a explicação:
-O senhor fez isso porque sabe que leite por cima da manga não faz mal. Só ,mata se beber primeiro o leite e depois chupar a manga por cima…
Para aquelas pessoas simples estava explicado porque não morri com aquele “abuso”. Aliás, nenhuma fruta deve ser misturada com leite, porque faz mal, aconselham. Não conhecem o magusto de Pernambuco, feito de manga batida com leite, ou a umbuzada, delícia feita de umbu com leite.
Há coisas na Medicina que o povo inculto diz entender mais do que os médicos. Uma delas é a pressão arterial, devido à prática que todo mundo tem e a questão das lombrigas, devido ao ensinamento dos “mais velhos”.
Mesmo numa consulta por uma estrepe no pé, a pressão necessita ser medida. Uma febrezinha de criança, uma briguinha com o marido: medir a pressão. Uma coceira na orelha, espirro, dor de cabeça, turvação da vista: é pressão na certa. Tontura repentina então, é pressão com toda certeza. E não adianta dizer que aquilo é problema de ouvido. Uma vez, consultado por uma professora , em resposta à minha pergunta sobre o que sofria, respondeu, já com o diagnóstico pronto:
-Pressão. Não sei se está alta ou se está baixa, só sei que é pressão.
O negócio de lombrigas então é de pasmar. Lombriga faz tudo. Desde mau gênio e falta de e falta de educação, até ataques de epilepsia, que tem o apelio de “ataque de lombriga”. Se a criança tem bom apetite, deve ser lombriga. Se tem pouco, é lombriga. Se deseja comer alguma coisa, lombriga….Nesses casos de querer comer ou beber alguma coisa, o negócio vai longe. Numa ocasião, faltou farinha de trigo no comércio e vi um homem chegar, vindo de longe, dos confins da fazenda do Aterradinho, de carro, e pedir pelo amor de Deus a Fioralina Orsi, dona da padaria, que lhe arranjasse a qualquer preço, um pouco de farinha porque seu filho estava com vontade de comer pão e o pedia em altos brados. Não havia em nenhum lugar, e o menino estava “embriagado”.
Nenhuma mãe ou pai deixa o filho passar vontade de comer alguma coisa que deseja, seja o que for, embora tenha que fazer sacrifício para comprar, ou saiba mesmo que aquilo vai lhe fazer mal de alguma forma. Quantas crianças já me trouxeram para consultar porque estavam enlombrigadas! Basta que ela olhe para algum alimento e os pais não lhes deem. Passou vontade, apareceu febre quase imediatamente, dor de cabeça, ou qualquer outra coisa, “ficou enlombrigado”, “desconfiou lombriga”…Por isso, é obrigação dar imediatamente o que ela desejar, pelo menos dar para provar um pouquinho. Minha mulher presenciou uma cena que, contada, pode parecer exagero ou mesmo é de duvidar…Viu na porta de um bar uma mulher bebendo pinga, com uma criança pequena nos braços. Parou de bebericar e olhou o filho.
-Tá com vontade ? – perguntou ao nenê; e logo encostou na boca do pobrezinho o copinho de pinga para que ele provasse e assim, não ficasse doente por ter passado vontade…
Qualquer um pede a um estranho um pouco do que está comendo, para dar ao filho que está com vontade de provar aquilo. E tem moleque que explora à vontade a ignorância dos pais, pois já sabe disso. Comem o que desejam (e como desejam!) mesmo com sacrifício, porque, dizem, se não satisfazerem os desejos dos filhos eles enlombrigam, ficam doentes e podem até morrer. Isso acontece aos casais incultos e outros que se dizem cultos….Recebo muitas crianças doentes, cujos pais logo adiantam o diagnóstico:
-Tá com lombriga desconfiada, doutor…Quis comer carne, eu não pude comprar. Para essa entidade mórbida que os médicos desconhecem, a “lombriga desconfiada”, o melhor remédio não é o da farmácia, é do benzimento da curandeira. Sei de casos de crianças que fumam desde os dois ou três anos de idade, porque viram os adultos fumarem, ficavam com vontade e, para não desconfiarem a lombriga, os pais se apressavam a dar-lhes cigarros. Conheci um de cinco anos de idade que desejou fumar cachimbo, como o padrinho fumava. O pai logo comprou o cachimbo e fumo picado. Quando ia acabando o fumo, o pai se apressava em comprar mais, porque o moleque fumava dia e noite, e só tirava o pito da boca para comer…E ai de quem quisesse aconselhar que tirassem o vício do menino!
Além da “desconfiada” há a “lombriga arejada”, cujos sintomas nunca pude entender, mas sei que existe, pois as mães falam muito nela. Há também os males causados pela lombriga “solteira” e isso acontece quando o médico prescreve o remédio para eliminar a tênia ou solitária, ou mesmo quando, após a tomada do vermífugo, o paciente elimina uma única lombriga (áscaris). Se o paciente sente qualquer coisa, dizem que ele só fica bom se eliminar outra, que é a parceira da primeira, pois ela está solteira, melhor dizendo, viúva. Se a infestação, achando que aquilo faz mal ao doente, por isso não dão as três doses prescritas, porque faz mal jogar tantas lombrigas, isso enfraquece muito o paciente..
Figura conhecidíssima do povo de Angatuba e cidades vizinhas, dona Maria Rodrigues era a parteira mais solicitada em todo o Município. Casada com um tipo popular e também muito conhecido, Salvador Rodrigues, o Vadô Gamela, político a seu modo, conversador pelas esquinas, toda a vida sofrendo de alegria ao trabalho, boa pessoa se não lhes pisassem os calos. Durante muitos anos foi cupincha, acompanhando os adeptos de Toniquinho Pereira, até que foi vítima de uma traição, como aconteceu comigo, e virou a casaca, começando a apoiar o lado de Levi Lisboa, quando passou a ser um autêntico e perigoso pescoceira.a Aconteceu um caso interessante que eu não posso deixar de registrar aqui, ao falar do velho Vadô Gamela…
Quando a dinastia dos Pereiras já estava em decadência, uma das derrotas que eles sofreram na eleição para deputado estadual, foi quando venceu Araripe Serpa, apoiado por Levi Lisboa, contra o “coronel”. Foi nas proximidades da eleição que se deu o rompimento de Vadô com os cupinchas de Toniquinho, com todas as consequências de ofensas mútuas, insultos e ameaças. O filho de Vadô, Oscar foi um que sofreu ofensas grosseiras pelo alto-falante da cidade e respondeu com outras ofensas em outro alto-falante. Esta foi uma das mais duras campanhas políticas de Angatuba , cheia de violências de toda espécie, desde a verbal até espancamentos, à sombra da polícia que entrava somente botando panos quentes, como me disse o delegado, que não queria se indispor com nenhum lado. Os Pereiras foram derrotados e a diferença na contagem dos votos do foi de apenas quatro. Ora, acontece que na família dos “Gamelas” havia justamente quatro eleitores que, com razão, fizeram alarde ao votarem. É evidente que a vitória dos pescoceiras se deveu exclusivamente aos quatro votos da família dos Gamelas. Este acontecimento, tão importante na vida política da cidade, com seu lado cômico, foi gostosamente comentado pelos bares e esquinas, tanto mais que Oscar, logo após a apuração, pregou numa gamela quatro cédulas de Araripe, candidato de Levi, e saiu desfilando pela cidade com a gamela nos ombros, para sofrimento de sua mãe dona Maria, que temia alguma agressão contra ele e, debalde, procurava sofrear as represálias que o filho e o velho Vadô tomavam com a euforia da vitória.
Sempre padecendo dos achaques da velhice, a veneranda parteira não sabia dizer não a quem a procurasse, seja para atender um parto, seja para um conselho, seja para encaminhar um necessitado a quem pudesse ajudar. Quando faleceu, após doença cardíaca, toda a cidade chorou a sua morte. Desaparecera aquela que talvez, por mais de sessenta anos, se dedicara a atender os partos das angatubenses, da cidade e do sítio, praticamente sem nada cobrar, a maioria das vezes só para servir.
Servir sempre foi o lema desta mulher extraordinária, boa, caridosa, sempre disponível. Eu que o diga. Quantas vezes atendi ao seu chamado para acompanhá-la ao sítio, a quilômetros de distância e fazer algum parto complicado, que ela sabia reconhecer, era caso para médico. Ao contrário das outras parteiras, que raramente ou nunca chamavam médico, dona Maria muitas e muitas vezes, pediu meus serviços profissionais para que resolvesse os casos que se lhe antolhavam difíceis. E sempre com humildade, confiança, apelando para Deus, após sessenta anos servindo o povo desta cidade, nem sempre recebendo agradecimento, ela repousa agora no seio de Deus.
Não só como parteira, mas atendendo a todo e qualquer caso para o qual fosse procurada, desde curar e benzer espinhela caída, até para fazer as pazes entre marido e mulher com seus conselhos. Sempre amável, nunca deixou de ter uma palavra de ânimo e conforto sem medir sacrifícios, para servir aos outros.
Deus a levou, livrando-a de uma doença sem esperança, que se arrastava por alguns anos. Está no céu, junto ao Criado, onde continuará a sua obra de bondade rogando por nós, que ficamos chorando a sua ausência.
Frequentei sua casa assiduamente, porque ela me lembrava aquela que foi minha mãe e, no Dia das Mães, beijava-lhe as mãos, pedindo-lhe a benção como o fazia com minha mãezinha…E no dia 18 de maio, comemorava a data de seu casamento e esta data coincidia com meu aniversário, e por isso trocávamos presentes.
Foi-se esta santa mulher, mas a sua lembrança permanecerá entre nós por sua vida benéfica. Não posso esquecer das nossas vicissitudes, dos casos que presenciamos junto ao leito de pacientes, nos locais mais difíceis do Município.
Lembro-me que fui apresentado a ela logo que cheguei a Angatuba. No dia seguinte, ela já me chamava para atender um caso de aborto hemorrágico, que tive que resolver somente com as mãos, pois não dispunha dos instrumentos necessários para a emergência, uma vez que meu equipamento ainda não havia chegado.
Ela sempre me lembrava de certa vez que fomos atender um parto para o qual ela havia sido chamada. Às três da tarde, quando tudo estava resolvido, o dono da casa nos disse que não havia nada para comer, pois ele e seus filhos haviam comido tudo quanto havia na casa. Entregou-nos então um prato de mel e um punhado de farinha como almoço.
E aquela vez que o marido nos expulsou da casa?
E a ocasião em que nos perdemos no mato, com a paciente carregada numa maca improvisada e que acabou dando à luz ali mesmo, no meio da capoeira? E as aplicações de fórceps, as curetagens uterinas feitas em cama de cipó trançado, sobre colchão feito de palha de milho, com uma lamparina de querosene fumaceando no meu rosto ? E quantas vezes ela me auxiliou a fazer estas operações obstétricas no chão forrado com esteiras ou panos, ou em camas improvisadas com tábuas ou esteiras sobre caixões?
São muitas e pitorescas as histórias que poderia contar aqui, das nossas viagens ao sítio para atender a casos de partos complicados e difíceis, ao lado da santa mulher que foi dona Maria Rodrigues? Muitos desses casos pareceriam incríveis, principalmente para meus colegas que moram em cidades grandes, ou que dispõem de hospitais bem equipados, rodeados de auxiliares competentes.
Um médico perdido numa região erma, em local destituído de aparelhamento indispensável para atendimento médico, cirúrgico ou obstétrico, só tem que contar com seus próprios recursos, a experiência e seu poder de improvisação. E tudo isso tem que fazer, muitas vezes, sob o olhar crítico da família da paciente, das comadres , dos curiosos e dos palpites dos “entendidos”. Casos de atendimento obstétrico nesses locais, o sofrimento é total: sofre a parturiente, sofre o marido, sofre o médico, e muitas vezes também a criança ao nascer. Quantas vezes, chamado pela parteira, encontrei a paciente em adiantado estado de estafa, sob o efeito de medicação ou chás de ervas infundidas na pinga e de fumigatórios com a queima de excrementos de animais, de cachorro inclusive.
Casos típicos de indicação cirúrgica (cesariana) tive que resolver sozinho, com a ajuda de Deus e das orações de dona Maria, que ajudava a empunhar o fórceps, a fazer e suturar episiotomias (corte lateral dos órgãos da mulher, para facilitar o nascimento) e ficar horas e horas ao lado da parturiente, esperando pela evolução natural do trabalho e de parto, ou velando contra uma hemorragia do pós-parto!
Dr. Renato, de camisa azul, à direita do então prefeito Lélio Moura, na câmara de Angatuba, no ano de 1995
Certa vez fomos ver uma paciente que já arrastava seu parto por dois ou três dias, com duas parteiras ao seu lado, cada qual manipulando “fórmulas” de ervas na pinga, a mulher completamente embriagada, o marido idem. Examinei-a e vi que estava indicada uma aplicação de fórceps para completar o parto. Dona Maria, nessas ocasiões me auxiliava muito, contendo a mulher em posição, afastando o marido que queria também ajudar com seu bafo de pinga, porque a mulher era dele, porque naquela casa quem mandava era ele e outros argumentos de bêbado. A aplicação de fórceps foi rápida e fácil. Fiz a medicação indicada para evitar hemorragias depois do parto e me retirei, sabendo que estava tudo bem: o útero normalmente contraído, as condições da mulher eram satisfatórias. Horas depois, fui procurado na minha casa pelo marido.
-Minha mulher- declarou-me – vai ter outro filho. A barriga dela está grande assim, deste tamanho.
E mostrou-me o tamanho. Aquilo me alarmou, mas como o homem ainda estava bêbado, não acreditei muito. Fiz-lhe algumas perguntas e, ao saber que ela tinha dores, estava muito pálida, sangrando um pouco , desmaiando, voltei imediatamente para junto dela, sabendo de antemão o que deveria ter acontecido: a temida hemorragia depois do parto. Dona Maria, como sempre, me acompanhou. Levei comigo o necessário para atender o caso, inclusive soros e equipamento para aplicá-lo. Lá chegando, vi que meu diagnóstico feito a distância, felizmente estava certo: ela estava com hemorragia, o útero cheio de sangue, com todos os sinais alarmantes de anemia aguda. A indicação urgentíssima era uma maciça transfusão de sangue, mas tive que me virar com meios alternativos e foi o que fiz. Consegui resolver o caso com o soro, massagens uterina e cabeça da mulher bem baixa, embora o marido e algumas circunstantes protestassem por eu ter posto a pobre mulher de quase de cabeça para baixo. Nisso, valeram a presença e as palavras de dona Maria, explicando tudo e empurrando para fora do quarto, as manifestantes.
Uma hora depois, a mulher estava recuperada, com o perigo afastado e dona Maria rezando seu terço, em ação de graças pelo milagre recebido. Uns dois dias depois encontrei o marido, que me deu notícias de que a mulher estava passando muito bem e agradeceu-me dizendo que eu fiz o que pude, mas a mulher só escapara devido aos chás e beberagens das parteiras e às orações de dona Maria a São José.
-Tudo bem. –concordei –Está viva, escapou da morte, graças a Deus.
-Sim. –concordou ele –Se fosse esperar pelo senhor, ela estava morta agora. O senhor não acredita, mas eu acredito. Quem salvou a minha mulher foi o chá que dona Quitéria, a parteira, deu a ela e as orações de dona Maria.
Naturalmente, achei melhor concordar.
Esta outra aconteceu em terras da Fazenda do Aterradinho, há mais de trinta anos, mas de que nunca me esqueci. Dona Maria bateu-me à porta certa noite, dizendo que tinha um problema para nós dois. E contou-me: uma mulher tivera o filho há quatro ou cinco dias, mas não saíra o “companheiro”. O marido, caboclo ignorante e abrutalhado, convocara quanto curandeiro e parteira havia pela redondeza, mas, apesar dos benzimentos, remédios “de farmácia”, fricções, nada fazia completar o parto com a expulsão da placenta. Um amigo e compadre do casal viera procurar dona Maria, porque sabia que ela era a mais entendida das parteiras. Queria que ela preparasse um “remedinho” para a comadre que estava sofrendo há tantos dias, com o “companheiro” grudado, estando tudo já com mau cheiro…Dona Maria disse-lhe o que devia dizer: aconselhou-o a procurar o médico, que era eu, o único da cidade. Aquilo –ela explicou – era caso que só um médico podia resolver e não adiantava dar remedinhos, pois os donos de farmácia já haviam receitado várias poções e pílulas que eram ótimas para retenção de placenta, segundo eles disseram. O homem voltou para o sítio, a fim de falar ao compadre sobre o que dona Maria aconselhara. Enquanto isso, ela viera me procurar e prontifiquei-me a ir atender o caso. Horas depois, o homem voltou. O marido estava uma fera – disse – e não queria saber de doutor, queria era um remédio para a mulher. Conversa vai, conversa vem, o homem resolveu me levar, mesmo à revelia do marido. Um fordeco nos levou até lá, tarde da noite. Ao entrarmos, tivemos a recepção hostil que já esperávamos. O marido gritava que não mandara chamar médico nenhum, que não ia deixar entrar nenhum homem no quarto da mulher dele. Ainda se fosse uma doutora…Mas homem? Nem morto ele deixaria entrar. A sogra – lembro-me bem – entreabiu a porta do quarto, pos a cabeça de fora e sentenciou:
-Ninguém chamou doutor aqui! Neste quarto não entra homem, as mulheres já estão resolvendo isso, o melhor é o senhor voltar porque ninguém mandou-lhe chamar.
Aí é que o marido, como se diz, tomou o pião na unha. Recomeçou com os gritos, nos tocando da casa para fora, enquanto o compadre e alguns vizinhos tentavam em vão acalmá-lo. O homem estava cada vez mais furioso, só com a ideia de um homem entrar no quarto para ver sua mulher. A coisa estava de tal maneira, que resolvemos nos retirar para que não fôssemos agredidos. Voltamos então, mas, a meu pedido, o motorista pôs-se a roda lentamente. Por isso, um dos compadres pôde nos alcançar meia hora depois, pedindo-me que voltasse para atender a mulher. Já haviam convencido o marido- disseram-me.
Ao entrarmos no quarto, meu estômago, sempre insensível, não reagiu, mas dona Maria quase vomitou e não pôde deixar de levar um lenço ao nariz, disfarçadamente, tal a podridão que encontramos. A placenta, retida há quatro dias, devia mesmo estar em estado de putrefação. O ventre da mulher estava completamente forrado de folhas de algodoeiro, “um santo remédio” para todas as complicações do parto, mas naquele não funcionara…Dona Maria pediu água morna, toalhas limpas e deu um verdadeiro banho na mulher, retirada toda a roupa suja que havia na cama e em seguida chamou-me.
Examinei a paciente. Cordão umbelical não havia mais, porque alguma entendida já o romperam tentando puxar a placenta pelo cordão. Calcei a s luvas e entrei em ação, enfrentando a fedentina. Retirei manualmente a placenta que estava aderida, aos pedaços, literalmente se desfazendo na minha mão. Tudo resolvido, uns golpes de cureta para acabar de limpar a cavidade uterina, algumas injeções para evitar hemorragias, algumas recomendações à mãe da paciente que agora estava contente, a paz voltou a reinar na casa, embora o marido ainda continuasse “emburrado”. Mesmo assim, me pediu desculpas pelo que houve , porque nunca precisara de médico, era só mulher que entrava no quarto, aquela fora a primeira vez, etc… E mandou que servisse a cada um de nós, um copo quase cheio de café frio. Dona Maria aproveitou a ocasião e lhe deu uma bronca, que ele ouviu gaguejando desculpas.
Ele procurou-me uma semana depois, atendendo ao meu pedido, para me trazer notícias da mulher. Estava tudo bem. Aproveitou a oportunidade para me trazer um presente, um frango e outro para Dona Maria. Disse-me que eu iria batizar a criança, mas uma vizinha já havia pedido para batizá-la, a fim de pagar uma promessa. E promessa, doutor sabe, não se deixa de cumprir, sob pena do pecado…
O médico rural, sem recursos técnicos, fazendo o que pode, é, como ouvi de um mestre durante o curso, um verdadeiro herói. Principalmente o parteiro, que tem que fazer coisas parecidas com milagres, ginástica de toda espécie para resolver casos que só deveriam ser atendidos em ambiente apropriado de um hospital, com auxiliares categorizados e material à mão. Era isso que me vinha à mente, quando me deparava com ambientes incríveis, onde teria que resolver sozinho, ou com a ajuda de Dona Maria ou da minha mulher, que muitas vezes me acompanhava, as situações desesperadoras que apareciam para serem resolvidas, em esteiras no chão ou em camas rústicas com colchões de palha que, muitas vezes, não eram senão um grande saco cheio de palha de milho, tudo fracamente iluminado por pequenas lamparinas fumacentas de querosene.
Hoje, após o advento do nosso hospital, acabaram-se os sofrimento de noites inteiras passadas à cabeceira das doentes, esperando um parto normal que, quase sempre, terminava a fórceps, tudo isso acrescido da impaciência da mulher, do marido, dos pais da paciente, no que não faltavam as manifestações de ignorância e falta de educação da própria parturiente. Como aconteceu uma vez em que fui chamado para ver uma paciente, dentro da cidade, em começo de trabalho de parto, primeira gestação, numa enorme excitação nervosa. Muito católica que era, fui encontrá-la gritando por tudo quanto era santo de que se lembrava:
-Ai, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora da Glória, São José, São Luiz, Santa Terezinha, São Francisco, Santa Edvirges…
Continuou a gritas pelos santos, mesmo após minha chegada, o tempo todo, sem escutar minhas palavras, sem responder ao que lhe perguntava.
-Santo Antônio, São Pedro, Nossa Senhora do Bom Parto, São João, São Benedito, Divino Espírito Santo, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora do Carmo…
Apliquei-lhe um sedativo, sem nenhum efeito, pois não deixou de gritar em altos brados, por todos os santos da Corte Celeste que lhe vinham à memória. O nervosismo propagou-se ao marido e aos pais, que passaram a exigir que eu aplicasse alguma injeção, ou desse algum remédio que fizesse a criança nascer imediatamente. Diante dessa situação, e vendo a paciente interromper suas evocações aos santos, para murmurar e às vezes gritar xingamentos contra todos ali, inclusive a mim, fui o primeiro a aconselhar a remoção da parturiente para o Hospital de Itapetininga, a cidade mais próxima, o que foi feito, debaixo de xingamentos da parturiente , tendo lá o feto de parto normal, no dia seguinte. Com todos os santos evocados. Amém.
Boas lembranças jamais se apagarão da minha memória, pois foram típicas as situações enfrentadas por mim na minha visão profissional de médico rural.
Numa certa noite muito fria, o termômetro se aproximando do zero, fui com minha parteira predileta, Dona Maria, atender a um chamado em local distante. Ela já havia ido à casa da mulher e não pudera resolver o caso. Contou-me: a criança vinha com os pés para frente, vinha portanto, de pé. Apresentação pélvica. Era esta uma situação de certa gravidade, que ela, instruída por mim e responsável que era, respeitava. Logo nascera o corpo da criança e a cabeça ficara presa. Eu lhe ensinara a manobra clássica para resolver esta situação de urgência, que ela fez algumas vezes, mais ou menos bem. É a antiga manobra de Mauriceau que, aliás, procurei ensinar a todas as parteiras que tiveram contato comigo. Quando feita corretamente com a ajuda de um auxiliar, livra-se a cabeça do feto com certa facilidade. Naquele caso, Dona Maria tentara a manobra, mas sem resultado. Vendo que o feto nascera morto, já macerado, resolveu chamar-me. Um jipe levou-nos na noite fria, madrugada alta, a geada branqueando pelo caminho. Na casa da paciente, acenderam uma fogueira na cozinha, em volta da qual todos se aqueciam, a fumaça invadindo toda a casa.
Examinei a paciente e constatei que o feto estava morto há dias. A paciente em bom estado geral, preparei-me para fazer a manobra de livrar a cabeça. Dona Maria me auxiliou, fiz a manobra e, com facilidade, libertei a cabeça, caso resolvido. Tudo correu bem como era previsto, pois as orações de Dona Maria a São José ajudaram muito…
No final de tudo, tremíamos de frio e o dono da casa perguntou-nos se aceitaríamos um café,
Ótimo! –disse eu, esfregando as mãos por causa do frio e antegozando o bem que nos faria um café bem quente. –Com este frio, um café seria ótimo!.
O homem apontou para uma prateleira e sua filha retirou de lá um bule e nos serviu. Um copo quase cheio de café velho, feito talvez no dia anterior, frio, grosso e fraco, muito doce, tipo de café 3F, em plena noite invernal…Sorrindo para mim, Dona Maria bebeu-o. E o motorista também. Eu tentei, mas não consegui. Preferi ficar sonhando com o café bem quente que iria encontrar em casa e, tremendo, voltamos a enfrentar a geada que branqueava lá fora , à luz da lua minguante.
FIM
happy wheels
maio 20, 2023 0
maio 13, 2023 0
maio 13, 2023 0
maio 07, 2023 0
Bom dia, Air!
Como faço para adquirir um exemplar de “Reminiscências” de Renato Carvalho Ribeiro, o inesquecível Dr. Renato, de Angatuba?
Pesquisei e não consegui.
Grato!
(08/07/2019)
Olá, amigo. Fico feliz de ter um leitor tão distante daqui. Esta remininscências que aqui postei ainda vai continuar, pois o dr. Renato escreveu um livro todo sobre sua vida após Pesqueira. A família dele mora aqui em Angatuba, tenho grande amizade com seus filhos. Dr. Renato já morreu em 2004. Se me passares seu e-mail posso enviar as novas postagens que dão continuidade à Remininscências. Agrande abraço.
meu Em mail. toinpesque@yahoo.com.br
Olá, amigo. Fico feliz de ter um leitor tão distante daqui. Esta remininscências que aqui postei ainda vai continuar, pois o dr. Renato escreveu um livro todo sobre sua vida após Pesqueira. A família dele mora aqui em Angatuba, tenho grande amizade com seus filhos. Dr. Renato já morreu em 2004. Se me passares seu e-mail posso enviar as novas postagens que dão continuidade à Remininscências. Agrande abraço.
Caro Amigo, receba meu Abraço.
Fiquei muito emocionado ao ler “Reminiscências” , pois sou neto de Manoel Cristovão dos Santos, filho de José Cristovão dos Santos e Sócio da Farmácia Santos, que até hoje encontra-se a disposição da comunidade Pesqueirense.
Gostaria de saber de endereço de seus familiares, se possível for, ou contato para comunicação.
Antônio Cristóvão
Que satisfação manter contato com um familiar de Manoel Cristóvão grande amigo de meu pai que clínicou em Pesqueira por alguns anos!Gostaria de manter contato comigo? Meu email é cesaria73@gmail.com Grande abraço César Lemos Ribeiro
Caro Amigo, receba meu Abraço.
Fiquei muito emocionado ao ler “Reminiscências” , pois sou neto de Manoel Cristovão dos Santos, filho de José Cristovão dos Santos e Sócio da Farmácia Santos, que até hoje encontra-se a disposição da comunidade Pesqueirense.
Gostaria de saber se o Dr. Renato de Carvalho ribeiro ainda vive e se é possível o endereço dele.
Agradeço.