abr 30, 2014 Air Antunes EDUCAÇÃO 0
“Sou um homem do meu tempo. um tempo marcado pelo combate ideológico que dividiu o mundo em dois. Não podia ignorá-lo. Nasci de uma família pobre em São Luis do Maranhão- uma cidade parecida com a Macondo de Garcia Marques, onde todas as notícias chegavam depois.
Sofri dificuldades e privações. fui até moleque de rua até os 12 anos. Meu apelido era “Periquito”, frequentava uma turma de pivetes do bairro e fazíamos o diabo, quebrávamos vidraças, batíamos nos outros garotos, roubávamos coisas no botequim. Não poderia fingir que nada disto aconteceu comigo, principalmente vivendo num país de tantas desigualdades sociais.
A poesia apareceu na minha vida quando tinha uns 13, 14 anos. Me apaixonei por uma garota, comecei a fazer poesia para ela. Na escola, a professora pediu uma redação sobre o Dia do Trabalho e eu fiz um poema, “Trabalho”, que terminou publicado numa revista. Eu achava que todos os poetas brasileiros estavam mortos. Comecei a estudar os parnasianos, Raimundo Corrêa, Olavo Ferreira. Ribamar é um nome muito comum no Maranhão. Por isso adotei o nome de Ferreira Gullar. Fiquei tão bom no uso do verso que até falava em decassílabo. Estudei profundamente gramática, também. Isso é uma coisa que define minha vida inteira. Qualquer coisa que eu faço, é porque aprendo. Não acredito em improvisação. Mais tarde um pouco, lá por 1949, o modernismo chegou ao Maranhão- 27 anos depois. O livro de Carlos Drummond e Andrade, “Poesia até agora”, mudou a minha cabeça. Achei muito estranhos os seus versos, levei um tempo para acostuma. Fui buscar nos críticos, Otto Maria Carpeaux, Mário de Andrade, a explicação para aquela poesia. Um ano mais tarde eu ganhava com um poema moderno o prêmio nacional de poesia do ´Jornal de Letras´.
Fui viver no Rio de janeiro em 1951. Mas um pouco antes ainda em São Luiz, comecei a ver o ser humano dentro do mundo da cultura, e o mundo começava a ser ruim, com percevejo, morte, doença, contradições. Em contraste com a vida da minha infância, que foi passada brincando, pegando passarinho, com muito sol, numa ilha verde deslumbrante e tropical, que é São Luiz.
Tudo isto já aparece em “A luta corporal”, considerando meu livro de estréia, de 1954. Depois do término da Segunda Guerra Mundial, o mundo ia descobrindo uma linguagem estética mais sutil e essencial, que valorizava a linha, o traço, a matéria, as formas geométricas. Isso que veio a dar o movimento concretista. No Rio, a principal influência era a do crítico de arte Mário Pedrosa, em São Paulo do pintor Waldemar Cordeiro. No campo da literatura havia em São Paulo Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, grupo com o qual eu mais tarde romperia, fundando o movimento neoconcreto. Então, no meio dessas mudanças, eu estava escrevendo “A luta corporal” , um livro que na realidade não tem nada a ver com o concretismo.
Pelo contrário, é uma poesia muito passional, uma mistura de lucidez e delírio. Mas os últimos poemas do livro levavam a uma desintegração da linguagem. Eu não estava querendo fazer vanguarda, mas descobrir algo permanente na linguagem, sua essência. Em 1957 eu dirigia o suplemento dominical do Jornal do Brasil e rompi com o movimento concretista. A poesia concreta dissipou-se porque não dizia nada às pessoas. A grande virada na minha vida então foi essa, a da recuperação da linguagem.
Quando veio o golpe de 1964 e a ditadura, minha poesia sofreu nova reviravolta e assumiu um posicionamento muito político. Li Marx e achei uma grande afinidade com ele. Voltei a ser brasileiro. Procurei primeiro uma aproximação com o líder camponês Francisco Julião, mas me desiludi dele e entrei para o Partido Comunista. Tive de virar clandestino, de me exilar; no exílio fiz o “Poema Sujo”. Esse poema nasceu de um desejo de escrever um romance sobre a minha vida no Maranhão. Escrevi vários capítulos, mas vi que não tinha fôlego para o romance, e acabei escrevendo o poema. Em geral os críticos dão muita importância a essa fase política minha, que na realidade só durou dois anos, e que não tem qualidade literária. hoje, não sei se sou ou não comunista, ainda. O desejo de justiça, o sonho de uma sociedade mais justa, é inato ao ser humano. Mas a experiência mostrou que tomar o poder é mais fácil do que efetivamente mudar uma sociedade. O maior exemplo é a decorada da União Soviética e dos países do Leste europeu. Eu me pergunto se é possível planejar a vida, ou uma sociedade. O planejamento inevitavelmente dá no estado totalitário. Não tem saída.
O poeta é um ser que não aceita a definição conceitual da vida. Os escritores justamente escrevem para escapar da conceituação. Literatura é entrega, descoberta, releitura do mundo. A redefinição do mundo é o alimento do poeta. Para mim, a arte é e sempre foi impasse e indagação. Porque, muito mais do que a poesia, a minha paixão é a pintura, embora não seja pintor, apenas crítico de arte. Na poesia joguei minha vida, tirei todo o dinheiro do bolso e pus em cima da mesa, perder ou ganhar. Na pintura nunca fiz. Para mim toda forma de arte é válida, desde que tenha expressão, trabalho, qualidade. O improviso de araque já passou de época.
A poesia, para mim, é um modo de estar no mundo. Hoje, vivemos o fim de uma idade, o limite de alguma coisa. A chamada era moderna aconteceu e acabou. Certas coisas que me pareciam indiscutíveis, não são indiscutíveis.
A diferença entre a linguagem da poesia e da prosa, por exemplo, é hoje reduzida a quase nada. A poesia nasce da prosa, a prosa é a mãe, a poesia é a namorada. O poema é a transformação da palavra. A interação entre as palavras transforma a linguagem em magia”.
Palestra de Ferreira Gullar à estudantes na Biblioteca Plínio Ayrosa, em São Paulo, no dia 23 de agosto de 1995.
Ferreira Gullar nasceu em São Luis do Maranhão em 10 de setembro de 1930. Autodidata, começou a escrever poesias aos 13 anos, dedicando-se mais tarde também ao estudo da crítica e da história da arte. Publicou seu primeiro livro ainda em sua terra natal, transferindo-se para o Rio de Janeiro em 1951, onde trabalhou na revista Manchete, no Diário Carioca, no Diário de Notícias e no Jornal do Brasil. Participou do movimento de arte concreta (1955/57), com o qual rompeu, fundando em 1959, com outros poetas e artistas plásticos, o movimento neo concreto. É membro da Associação Internacional de Críticos de Arte. Foi professor do curso de formação de professores da Escolinha de Arte do Brasil entre 1959 e 1962. Dirigiu a Fundação Cultural de Brasília e foi presidente do Instituto Brasileiro de Arte e cultura (IBAC). Publicou mais de 20 livros, entre poemas, ensaios, crítica de arte e teatro. Suas obras mais importantes são “A luta corporal, ” Poema Sujo”, “Toda poesia e barulho” (poemas), “Teoria do não objeto”, “Cultura posta em questão”, “Vanguarda e subdesenvolvimento”, “Argumentação contra a morte da arte” e “Indagações de hoje” (ensaios). Tem poemas e livros de ensaios publicados em alemão, francês, inglês, espanhol, sueco, dinamarquês, romeno, russo, vietnamita, armênio, japonês e holandês.
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