jun 03, 2014 Air Antunes EDUCAÇÃO 0
“Sempre tive um grande interesse pelos problemas do comportamento humano. Com os meus 50 anos de prática tearapêutica, com as 70.000 horas que passei escutando gente reclamar da vida, posso ter uma idéia bem clara de como se processam os relacionamentos familiares e pessoais, e dos problemas sexuais presentes na nossa vida. Posso dizer com segurança que não há nada mais perseguido do que o amor e a sexualidade, na nossa sociedade. O que me faz lembrar de uma história de Júlio Verne, ´A galera Chancelor´, que li quando era criança. Era uma galera antiga que naufragava e um certo número de passageiros e tripulantes se salvava, numa jangada. Depois de uns dois ou três dias, como a comida e a água potável começassem a escassear, os marinheiros organizaram um esquema de sorteio: cada dia uma pessoa teria de matar uma outra, para que alguns pudessem sobreviver. Só que o narrador, horrorizado com isso, acaba caindo na água, decidido a se afogar. Mas qual não é a sua surpresa, ao começar a engolir água, ao ver que estavam navegando em água doce….A jangada estava na foz do Rio Amazonas. Então eu uso essa imagem para nós: estamos morrendo de sede e entretanto estamos cercados de água doce, isto é, de amor, de sexualidade, por todos os lados. Só que não podemos usar essas coisas boas no tipo de sociedade repressiva em que vivemos.
Temos a idéia errônea de que tudo está liberado, hoje. Porque tudo é aberto, há um milhão de revistas pornográficas em cada banca de jornal, garotas nuas, em pelo menos metade dos comerciais que vemos, toda a espécie de coisas são ditas, como nas músicas dos Mamonas Assassinas…Mas na realidade isso não significa nada. Está tudo ainda como no tempo de Freud e posso provar isso. O que existe é uma atitude extremamente ambígua, que leva à confusão. Na mídia há uma exagerada promoção de assuntos sexuais, parece haver uma verdadeira saturação de sexo. O que nos levaria a crer que este seja uma coisa fácil, banal, simples….Mas a verdade é bem outra.
Porque na família, não há sexo. Tudo se passa em segredo. Mãe da gente não tem sexo. Diz-se ainda que ´criança é inocente´. E falar de sexo em termos francos em lugares mais ou menos sérios, como este, causa desconforto e escândalo. Uma vez fui fazer uma palestra numa universidade importante, no interior. A platéia era só de rapazes e moças de 15 a 25 anos, o que quer dizer no auge do fogo, do entusiasmo sexual. E no entanto quando comecei a falar o diretor entrou em pânico, como se ninguém conhecesse nada do assunto.
Se essa atitude ainda persiste hoje, imaginem então o que acontecia no meu tempo de adolescente, há 50, 60 anos atrás…Naquele tempo, ninguém tinha sexo. Sexo não existia, a não ser em algum quartinho muito escondido.
E eu, que só pensava naquilo, me julgava um anormal, um tarado. Posso dizer que essa atitude me prejudicou muito, em toda minha vida. A linguagem usada para designar a sexualidade, os órgãos sexuais, é inadequada, ´suja´principalmente nos ambientes masculinos. Então, vem a pergunta: se falamos de sexo usando uma linguagem tão execrável, como vamos fazer sexo de maneira boa, prazerosa, saudável? Quais os critérios de ´normalidade´que podemos ter, criados dessa maneira?
Vejam o que acontece com a educação sexual. Sempre que é proposta numa escola, metade dos país são contra e ela acaba não acontecendo. E no entanto, a sexualidade está presente sempre. É só observar uma ninhada de gatinhos ou de cachorrinhos, como tem seus jogos sexuais. Está provado que se esses animais não puderem ter esses jogos, terão problemas mais tarde. O mesmo acontece com o ser humano. As pesquisas com ultrassom revelam que o feto humano do sexo masculino tem ereções a cada hora e meia, dentro do ventre materno, depois dos sete meses. Com a menina não é possível ver o que se passa mas sabe-se que quando nascem elas já tem secreções, como se fossem mulheres feitas. As crianças desde a mais tenra idade se tocam, sabem provocar o prazer. Só que o ser humano aprendeu a disfarçar, porque percebe pela atitude dos adultos que o cercam, pelo silêncio do papai, pelo rubor da mãe, pela risada pornográfica do tio, ou quando a avó sai da sala, que sexo é coisa pior que bomba atômica….
Então, o resultado disso tudo é que nossa vida sexual é de uma pobreza franciscana. O sexo, o anor, pode ser a maior experiência do ser humano, mas a maioria das pessoas vive a vida toda sem ter grandes sensações, com uma vida sexual extremamente rotineira, sem imaginação. E a família é uma grande oficina de fabricação artesanal de normopatas para o sistema… Uma das piores coisas é que na família as pessoas parecem ter a autorização para se agredirem. Se essas mesmas pessoas fizessem com o amigos, os funcionários, os chefes, o que fazem com a mulher, com o marido, com os irmãos e com os filhos, perderiam tudo, inclusive o trabalho e a carteira de trabalho, poderia, ser até presas…A criança é a classe social mais oprimida do mundo. E depois dela, a mulher. Se na nossa Constituição o papel de chefe da família já não é exclusivo há situações como esta: um exemplo,
Antoninha, favelada, 14 anos, analfabeta, meio débil, tem um nenê. Imediatamente ela se transforma na Mãe, o ser que tudo sabe, que orienta as crianças, que mesmo quando espanca brutalmente o faz por amor….Seria simples resolver assim todos os problemas do Brasil, bastaria transformar todas as mocinhas em mães….
Estas, e outras verdades, todos nós sabemos. Vocês sabem que tudo isso que eu disse até agora é verdade, não é? Pois bem: o meu único orgulho,como intelectual, é conseguir exprimir com palavras todos estes problemas. A vida toda passei refletindo sobre eles. E na maior parte das vezes me senti muito mal com isto. Mas também existe a esperança de que o ser humano vá progredindo, vá aprendendo a descobrir em si mesmo e no outro toda a sua potencialidade de prazer. Afinal, só na nossa pele temos cerca de 150.000 pontos sensíveis…O que nos dá a impossibilidade de repetição da mesma sensação prazerosa…Mas com a péssima deformação educacional que sofremos, estamos fechados, encurralados, incapazes de nos mexer. Perdemos a autenticidade, a transparência, a potencialidade de desfrutar a vida ao máximo. Bem, estes são alguns pontos que eu quis colocar para vocês, algo que levei a vida toda refletindo e experimentando, os princípios que norteiam a minha prática terapêutica e que procuro desenvolver nos meus livros”.
Palestra realizada para estudantes na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, nos dias 20 e 27 de setembro de 1996.
Jose Angelo Gaiarsa nasceu em Santo André em 19 de agosto de 1920. Psiquiatra, autor de mais de 35 livros e com intensa participação na imprensa, principalmente a televisiva. Formado em medicina pela Universidade de São Paulo e especializado em Psiquiatria pela Associação Paulista de Medicina, foi o introdutor das técnicas corporais em psicoterapia no Brasil. Durante dez anos (de 1983 a 1993), Gaiarsa apresentou o quadro Quebra-Cabeça do Programa Dia-a-Dia, transmitido pela Rede Bandeirantes, em que analisava problemas emocionais, contando sempre com a participação dos espectadores. O médico ainda era especialista em comunicação não verbal. Suas produções na área da psicoterapia têm contribuído para a produção científica e para a socialização dos conhecimentos científicos sobre temas como família, sexualidade e relacionamentos amorosos. Alguns de seus livros: “Tratado geral sobre fofoca” (1978), “O espelho mágico” 91984), “Como enfrentar a velhice” (1986), “Poder e prazer” (1986), “A engrenagem e a flor” (1986), “As vozes da consciência” (1991), “O que é corpo” (1991), “Minha querida mamãe” (1993), “Respiração, angústia e renascimento” (1995). Gaiarsa faleceu na capital paulista no dia 16 de outubro de 2010, aos 90 anos de idade.
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