nov 27, 2018 Air Antunes Artigos 0
LÚCIA HELENA ISSA
Querido amigo,
Tantos anos se passaram desde a nossa infância, desde as nossas férias de verão, quando brincávamos juntos no mar ainda verde esmeralda de Ubatuba, onde nossos pais tinham uma casa de praia e onde vivemos grande parte da magia daqueles anos..
Você sempre sonhou em ser médico. Desde aquela tarde de janeiro em que levei 6 pontos na mão, depois de um tombo de bicicleta, e você me socorreu e, antes de chamar minha mãe, amarrou sua camiseta no ferimento para parar o sangue.
Eu tinha apenas 9 anos e já sonhava em ser jornalista e contar histórias de guerras e de amor. Você tinha 12 anos e sonhava em ser médico.
Aquela menina ainda vive em mim e acabou mesmo se tornando uma jornalista. Descobri que que você se tornou um médico, mas quando nos reencontramos uma tristeza imensa colonizou meu coração. .
Quando foi que aquele menino repleto de sonhos deu lugar a um médico tão diferente do que eu imaginava , um médico que relativiza seu juramento, um médico que hoje é a favor da pena de morte, que perdeu todos os seus sonhos e que me parece mais fascinado pela morte do que pela possibilidade de resgatar vidas?
Lembro que quando eu voltei de Havana, onde morei por alguns meses quando estava terminando a faculdade de Jornalismo, para escrever o meu TCC sobre como era viver em Cuba, você ainda não havia sido sequestrado pelo ódio e conversamos por horas.
O que aconteceu com você e com tantos amigos médicos que um dia eu admirei? Por que tanto desconhecimento e tanto ódio?
Desde que tudo aconteceu, desde que Bolsonaro agiu de forma imoral e provocou a saída de mais de 8000 médicos cubanos que atendiam nossos irmãos nas regiões mais pobres do País, tenho visto, com tristeza o ódio e a crueldade, caminhando rapidamente pelas redes sociais, inclusive nas suas, ao lado de seus pais, a ignorância e o medo.
Por que tanto ódio por uma pequena ilha que tem enviado médicos para salvar vidas em 66 países do mundo?
Você conhece um pouco da história de Cuba? Você conhece um pouco da história de Che e Fidel?
Você sabia que Fidel nasceu em uma família bastante rica de Cuba e descobriu, ao crescer, que mais de 60 por cento das crianças da ilha estavam morrendo de desnutrição e que muitos médicos haviam fugido da ilha depois da Revolução e ele poderia contar apenas com 14 deles?
Você sabia que Che Guevara, médico como você, pediu a Fidel que investisse em salvar vidas, que criasse várias faculdades de medicina, que criasse uma rede de médicos de família, idealizada por ele, para que pudessem de fato salvar as crianças que estavam morrendo na ilha?
Você sabia que Cuba passou então a universalizar o acesso a saúde e às faculdades de todas as províncias da ilha?
Você sabia que os cursos de medicina existem em todas as microrregiões do país e que cada uma dessas faculdades chega a formar 100 médicos por ano, totalizando quase 2000 médicos por ano na ilha? Sim, só a famosa e imensa ELAM, a Escola Latino Americana de Medicina, que visitei 3 vezes, recebe milhares de estudantes, inclusive muitos estrangeiro e já chegou a receber 1.000 estudantes de medicina por ano.
Você sabia que , segundo a ONU, antes da Revolução, a maior parte das terras da ilha estava em poder dos americanos, que pagavam 50 centavos de peso por 12 horas de trabalho de um cubano? E que de 1, 5% das terras pertencia aos escravagistas e violentos senhores de terras cubanos? Você sabia que, um ano antes de a Revolução triunfar em Cuba, 60% dos cubanos viviam em bohios, uma favela ainda mais pobre e triste do que qualquer favela que você tenha visto?
Você sabia que, antes da Revolução de Che e Fidel, 43% dos adultos eram analfabetos, e 47 % das crianças não ia a escola, e hoje o analfabetismo não existe na ilha?
Você sabia que 30 % da capital, Havana, antes do trinfo de Che e Fidel , não recebia eletricidade, pois eram os americanos que decidam quem merecia ter eletricidade e quem não merecia? Você sabia que a soma das apostas nos cassinos cubanos diariamente era de 266,000 dólares, mas nada desse dinheiro ia para escolas ou hospitais, mas apenas para um grupo de mafiosos cubanos?
Você sabia o ditador Batista afirmava que o jogo era ilegal na ilha, porque assim uma parte do dinheiro, 32.000 dólares , que em 1958 era uma quantia infinitamente maior que hoje, iam para seus policiais corruptos e para ele mesmo, enquanto ele dizia para o mundo que o jogo era ilegal em Cuba?
Cuba teve, depois de Che Guevara índices tão baixos de mortalidade infantil quanto os da Suíça. Você sabia que, mesmo com o embargo comercial criminoso dos EUA contra Cuba, durante muitos anos, a ilha teve o melhor sistema de Saúde do continente, conseguindo erradicar muitas doenças , atendendo gratuitamente a 100″% dos cubanos e ainda atendendo milhares de pacientes italianos e brasileiros, que ainda vão para a ilha para tentar curar doenças de pele, fazer um transplante de rim ou fazer um tratamento que na Europa custaria milhares de euros ?
Você sabia que nos meses em que morei em Havana, jamais vi uma criança de rua? Sim, existem muitos outros problemas em Cuba, mas não existem crianças morrendo de fome e velhos desamparados como no Brasil.
Você já se perguntou por que, há dois anos, o NEW YORK TIMES chamou Fidel de ” o revolucionário que desafiou os EUA”?
Você já se perguntou por que tantos jornais italianos homenagearam Fidel há dois anos, no dia de sua morte?
Você se perguntou por que o Papa Francisco, assim como eu, falou de sua imensa tristeza naquele dia e lamentou a morte de Fidel? Ou por que Mandela era seu amigo pessoal? Tente buscar respostas, pesquise, não seja refém do ódio, pergunte ao menino que você foi um dia o que ele faria em seu lugar.
Deixo aqui meu afeto pelo menino que queria ser médico e salvar o mundo, assim como eu queria lutar pela paz e escrever sobre a crueldade das guerras. Deixo também minha imensa tristeza pelo momento que vivemos, pela intolerância, pelo ódio aos cubanos, pelas guerras alimentadas pelos EUA, pelos milhões de refugiados.
A menina que vive em mim ainda tem esperanças de reencontrar aquele menino, e ainda sonha em viver em um Brasil menos desigual, um Brasil cujo símbolo máximo não sejam dedos apontados para nós e prontos para nos matar, um Brasil onde o sonho do novo governante seja o de resgatar vidas e não o de espalhar a morte. Artigo do portal Brasil 247
Lúcia Helena Issa, jornalista, escritora e ativista pela paz. Foi colaboradora da Folha de S.Paulo em Roma. Autora do livro “Quando amanhece na Sicília”. Pós- graduada em Linguagem, Simbologia e Semiótica pela Universidade de Roma e embaixadora da Paz por uma organização internacional. Atualmente, vive entre o Rio de Janeiro e o Oriente Médio.
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