mar 29, 2015 Air Antunes Ilustrada 0
“Dinheiro de Sangue”, uma crônica escrita por Renato de Carvalho Ribeiro, médico que exerceu sua nobre profissão com devoção e amor, mas também um amante das artes, um pintor da natureza; poeta, desenhava, pintava quadros, fazia caricaturas,tirava fotografias artísticas e até fez alguns filmes. A crônica, alusiva à uma semana santa, expõe Judas Iscariotes, personagem bíblico que, se passou para a história como protagonizador da traição mais famosa de todos os tempos, não deixa de ser aquele que contribuiu para que se cumprissem as escrituras e o Filho de Deus fosse crucificado para amenizar os pecados do mundo. A crônica foi publicada no jornal Folha de Angatuba de 11 de março de 1993. A ilustração também é do Dr. Renato, como era conhecido por todos em Angatuba.
Quem pode condenar um pecador arrependido?
Um homem entre mil naquele dia particularmente movimentado postou-se diante do Templo e seus olhos vermelhos e insones faltaram por um momento as monumentais colunas que se erguiam no alto da escadaria de pedra já um tanto gasta pelo perpassar continuado de sandálias e pés descalços de judeus, samaritanos, pastores, potentados amonitas ou ricos mercadores das tribos de Issachar.
Cabelos avermelhados, barbas em desalinho, tinha o perfil que lembrava as águas das alcantilhadas falésias à beira mar de Tiro, respiração ofegante e profunda; e a túnica de lã grosseiramente tecida era cingida por um pedaço de corda à cintura.
Apoiando-se aqui e ali, subiu penosamente os degraus e seus pés descalços pisaram a lage macia dos mármores brancos do “átrio dos gentios”, ladeado por duplo pórtico de estrutura colossal. Passos pesados e hesitantes o levaram dali ao luxuoso átrio dos sacerdote4s, onde, pela manhã, muito cedo, já estivera a fim de cometer o hediondo crime que agora deixava o seu coração em fogo e ele devorava alma torturada.
Entrou. Não viu, como pela manhã, a colunata de fino mármore, os vasos de alabrastro nem a tapeçaria luxuosa; não notou , como antes, os suportes de ouro das tochas, o ouro que enfeitava os pórticos, o ouro que brilhava por toda parte; seus olhos rubros e insones passaram sem ver pelas madeiras preciosas, peças de marfim e pela trama delicada das cortinas arabescadas a fim de ouro e prata. Não notou nada, não viu nada da daquela segunda vez que entrava no Templo de Jerusalém. Só via diante de si seu crime horripilante. Na sua mente era a cena que não conseguia apagar e que presenciara na manhã ensolarada daquele dia. Do meio do povo vira-o sair entre os guardas que escarneciam d´Ele. Pilatos, o governador, entregara-o para ser crucificado e os gritos dos fariseus, as gargalhadas dos pretorianos, o vozerio da populaça eram nos seus ouvidos a cantilena lúgubre que o perseguia desde então, anatematisando-o.
Sabia-o inocente e meigo, pois há tempos era um dos doze que o acompanhavam em suas andanças e pregações pelas plagas da Galiléia, sabia que de sua boca não sairia jamais nenhuma palavra que não fosse da bondade, de perdão e de amor. Quão ímpia era a acusação de que era vítima de tramar contra o poder de César.
Olhou o pórtico do átrio antes de entrar, sem ver o ouro que o ataviava nem as pedrarias que rebrilhavam à luz das clarabóias. Era só aquele pulsar martalente dentro do peito, nas têmporas que incendiavam. Só a visão tétrica do Mestre amarrado e coroado de espinhos, escarnecido, cuspido, vilependiado. Só a consciência ou o que lhe restava dela, a lembrar-lhe a ignomínia que cometera.
Entrou, cambaleante como um bêbado.
Os sacerdotes e anciãos preparavam-se para o sacrifício ante o altar dos holocaustos, recém-saídos do conselho, e alguns apenas o olharam de relance. Um servo aproximou-se e um deles falou-lhe qualquer coisa em voz baixa. O homem desvairado não ouviu a ordem, mas compreendeu-a. Teria que ser expulso do Templo- adivinhara o que o sacerdote ordenara ao servo sem se dignar a virar-se para olhá-lo. Antes que o serviçal o segurasse para lançá-lo à rua, teve tempo ainda de gemer:
-Vendi um inocente, ó sábios sacerdotes! Tomai o vosso dinheiro, não quero!
Um deles o olhou com desprezo:
-Nem nós tampouco! –retrucou com asco- Levai o dinheiro, é vosso!
Desaparecerei com a vossa traição, não mancheis com a vossa presença a santidade do Templo!
Fez um gesto para o servo que agarrou o homem pela gola da túnica e o arrastou dali, não lhe dando tempo de tirar o cinto de corda a bolsa pendente. E Judas, o Apóstolo que veio de Iscariotes, foi lançado pela escadaria de pedra do Templo deserto. Ao cair em terra olhou por um momento ao servo que subia os degraus, de volta, passando as mãos nos calções, talvez para limpá-las no contato impuro.
Ficou ali, por um instante, com a bolsa de couro na mão, sentado a um degrau, pensando na sua desgraça. Algo move-se ali perto. Um mendigo maltrapilho passava coçando suas chagas com as unhas imundas, os farrapos do que fora uma túnica pendendo-lhe dos braços e do corpo escaveirado. Parou um pouco diante dele, hesitante e temeroso antes de estender-lhe a mão.
Judas lançou-lhe aos pés a bolsa que, caindo ao chão, abriu-se e deixou ver as moedas reluzentes que continha a rolarem pelas lajes da rua, tilintando.
O mendigo parou e olhou aquilo. Mas seus olhos pequeninos e escuros não brilharam de cobiça nem sua mão esquelética se adiantou para agarrar o reluzente dinheiro. Ao contrário, o esfarrapado homem encolheu-se por um momento à vista das moedas, como se tivesse medo delas, algo intimamente lhe dizia que aquele era um ouro amaldiçoado, pagamento da traição. Estático, ficou por algum tempo olhando-o, sem ousar tocá-lo.
Com um movimento de mãos, convidou-o a apanhar as moedas sem compreender porque do gesto de asco do outro. E este, com seu pesado bordão de peregrino empurrou para o dono a bolsa aberta e os siclos reluzentes, como se nem mesmo ele quisesse ter contato com o dinheiro de sangue. E nada disse. Ergueu a suja cabeça de barbas brancas e revoltas, empunhou novamente o bordão e seguiu adiante com passo firme, deixando para trás as moedas da traição diante do dono.
Então Judas resolveu partir. Seus passos lerdos e trôpegos fizeram-no passar ao lado dos trinta dinheiros no chão. Deixou-os onde estavam. Atravessou as portas de Jerusalém, atropelando-se com mendigos, cameleiros e pastores. Iria para bem longe3, para além Jordão, para Betânia, desejava desaparecer no interior da Síria, em Damasco….Ou tomaria sem rumo certo pelas estradas que conduzem aos montes Hermon, em cujas faldas viveria isolado, longe de tudo, longe de todos….Ou procuraria o mar interior da Galiléia, em cujas margens viveria como um pária, perseguido , torturado pela agonia do Mestre crucificado…Não. Aquelas mesmas águas lhe trariam uma lembrança demasiado viva, pois sobre elas Ele pregara ao povo, sobre elas andara, dormira, acalmara tempestades.
O arrependimento que lhe punha a mente em fogo e lhe dilacerava o coração era a razão mesma de fazê-lo andar a esmo, sem destino, perdido em meio do povo. Foi andando, esbarrando em uns e outros, como um ébrio. Esteve deitado à sombra de um mercado, não soube por quanto tempo. Os mercadores expulsaram-no dali a punhaladas. Continuou seu caminho, procurando a estrada de Damasco, na rota das caravanas, qualquer lugar onde esquecer, onde pudesse curtir o arrependimento de haver vendido o sangue de um inocente.Bebeu a água que alguém lhe ofereceu à beira de uma cisterna. Molhou com ela a cabeça que ardia, desejando poder refrescar com o líquido frio a consciência que o torturava. Sua alma, como se estivesse atingida pelas febres más dos pântanos de Naim.
Continuou a andar à toa, rasgando a túnica nas urzes do caminho, sem saber por onde caminhava.
Caiu exausto, por fim, à sombra de uma árvore e descansou por um momento a cabeça nas mãos. Pensou um pouco. Nunca alcançaria Damasco. Era um condenado, mas não poderia viver eternamente errante, com a lembrança do seu hediondo crime a lhe torturar a alma.
Ergueu-se decidido e levou a mão à cintura cingida pela corda. Levantou os olhos. Não para o céu, mas para a árvore que lhe dava sombra.
A árvore era uma figueira.
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