jul 18, 2017 Air Antunes Artigos 1
MARCOS BAGNO
Uma coisa que sempre surpreende os linguistas é a incapacidade que a maioria das pessoas tem de reconhecer que a linguagem humana é um objeto de estudo científico e que, como tal, é preciso conhecer alguns princípios básicos dessa ciência antes de se emitir qualquer opinião a seu respeito. Essa incapacidade é visível principalmente entre jornalistas. Quando vão abordar qualquer outro assunto, desde como não deixar um suflê murchar até a exploração das luas de Júpiter, sempre recorrem a quem tenha um mínimo conhecimento de causa, de experiência e de formação para tratar do assunto. Mas quando o tema é língua, nada disso: bastam as noções mais rasteiras, o senso comum mais bisonho, a superstição mais descabelada. E, pior, tudo isso apresentado num discurso de grande pompa e circunstância, como se fosse o suprassumo da sapiência divina. Só que não é.
Pior do que a afirmação de tolices monumentais é a reação de muitas pessoas, supostamente letradas (e, de novo, com destaque para os jornalistas), quando se metem a contrapor argumentos ao trabalho de linguistas profissionais. Ouvem cantar o galo, não investigam se era mesmo um galo ou um papagaio, entendem o canto pela metade e saem disparando petardos contra alegações que nenhum linguista profissional em sã consciência jamais faria. Junte-se a isso o fascismo golpista que se apoderou dos nossos maiores meios de comunicação e a desgraça fica completa.
A prova de que essa situação não é nada nova está nestas palavras de Fernão de Oliveira, que escreveu a primeira gramática do português, publicada em 1536 (isso mesmo: 1536): “Eu não dou licença que alguém possa ser meu juiz, senão quem ler os livros que eu li, e com tanto trabalho, e tão bem ou melhor entendidos. E ainda assim, a sentença há de ser que para emendar meus erros escrevam da mesma matéria outras obras melhores, nas quais mostrem saber mais que eu disto que falamos. E senão, tudo o que mais fizerem é murmurar, que não cabe entre homens sabedores, pois quanto à dos ignorantes não faço conta. E bem sei que não deixam de repreender senão o que não entendem”.
É triste verificar que essas palavras, sem tirar nem por, permanecem válidas 480 anos depois, apesar de todos os avanços científicos e progressos culturais ocorridos nesse longo período. A recusa dos togados, dos letrados e dos escribas em geral em reconhecer que nada sabem sobre o funcionamento das línguas, nem da sua própria, só demonstra o que nós, linguistas e sociólogos da linguagem, sabemos há muito tempo: que a língua é um instrumento de controle social poderosíssimo, de opressão e de repressão, de exclusão social e de conservação dos privilégios. Por isso, desvendar seus mistérios, desmistifi car seu uso, democratizar seu conhecimento é um grave perigo, um perigo que os poderosos de sempre nunca querem correr. Muito menos aqui e agora, no Brasil, que volta a ser uma ditadura, chefiada precisamente pelos ignorantes que juram de pés juntos que falam bonito, enquanto praticam crimes dos mais sórdidos contra toda a população do País. Fora, Temer!
Marcos Bagno é linguista, escritor e professor da UnB
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One thought on “Falar Brasileiro: 480 anos de ignorância”