abr 07, 2014 Air Antunes EDUCAÇÃO 0
“Escritores nas Bibliotecas -Diálogos e Debates” é uma publicação lançada nos anos 90 que apresentou os vários debates de escritores em bibliotecas públicas da cidade de São Paulo naquela década.. A iniciativa foi do Departamento de Bibliotecas Públicas da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. O site Onda 21 transcreverá alguns dos debates travados pelos escritores até em atendimento ao que afirma na apresentação da publicação, o então secretário municipal de Cultura de São Paulo, Rodolfo Konder, quando afirma que “Este país tem um compromisso com a diversidade , a cultura, a arte- e a inteligência e a liberdade contidas na palavra. Precisamos tratar as palavras com carinho, fruir sua magia. Temos excelentes escritores, cumpre lê-los sempre”.
O debate empreendido pelo escritor Thiago de Melo ocorreu na Biblioteca Cassiano Ricardo, de São Paulo, no dia 21 de agosto de 1996.
“De mim, só direi que sou amigo das estrelas, entendo os recados dos ventos e sou exímio empinador de papagaio. Em vez de falar de mim quero falar do povo da floresta onde vivo desde 1977, quando voltei de um exílio de nove anos. Porque com com o exílio , e o cárcere, que paguei o preço do meu amor à justiça e à liberdade.
Escolhi morar na floresta Amazônica, com o povo que é considerado o mais miserável do planeta, porque no tempo que passei fora do país vi jovens da Europa e também dos Estados Unidos que sabiam muito mais sobre a vida e as riquezas da Amazônia, e também sobre a sua devastação , do que eu próprio, que nascera lá. Decidi estudar a minha região, mas não em gabinete. Queria saber como vive o filho mais importante e mais desamparado da floresta, o homem, contando para isso com o saber dos grandes cientistas que com o auxílio de satélites controlam as grandes queimadas, de instituições internacionais, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA), do Museu Goeldi e do Instituto dde Experiências Espaciais (IEE). Mas aprendi muito mais sobre a floresta com meus próprios irmãos que ali encontrei há já dezenove anos, e que me valeram cinco livros sobre a Amazônia e mais quatro poemas. Gente de convivência fraterna, muito melhor do que eu, de uma solidariedade humana que ninguérm mais tem. Porque o homem depende do seu meio. Aqui, nesta selva de pedra, só existe o temor do próprio semelhante, é uma gente marcada pelo desamor, pelo desinteresse e pela indiferença. Quando saio da floresta, estranho muito. É verdade que vivi em grandes metrópoles, mas sou atraído pela grande força da floresta. Os que se dizem cristãos, na cidade esquecem-se da máxima de Jesus, ´amai-vos uns aos outros´, e v~eem no seu próximo apenas um agressor. A selva é para mim a cidade da ternura.
Vou falar das crianças que antes dos dez anos já entendem o recado do vento, o que ele está dizendo para as palmeiras da injazeira, do açaizeiro. Os mais velhos chegam a conversar com as estrelas, são amigos dos pássaros, mas todos são, sobretudo, companheiros daquele animal tão desamparado que é o ser humano.
Nosso editor, tão amado, que há seis meses nos deixou, Ênio Silveira, um homem que só viveu para servir o povo com seus lindos livros, dizia na última vez que o vi que não se conformava com a minha decisão de ir morar na floresta. E eu respondi: “Tu é que devias mudar para lá”. Porque lá, quando uma pessoa tem uma febre, um resfriado, uma hora depois de adoecer já tem na sua porta muitas pessoas que passaram para levar uma erva, raízes, para sua cura. Eles nem te conhecem direito , mas são sempre solidários. Por isso reforçam dentro de mim a fé de que é possível , sim, a construção de uma sociedade humana solidária, neste lindo planeta Terra. Eles, os povos da florestas, ´caboclos, curucú/ponta de lancha e bandeira azul´, vivem dentro de uma realidade mágica, naturalidade, às vezes ate a morte de um filho, ou da mãe, porque tudo faz parte da vida. Porque eles são a floresta. A grande floresta onde existe um silêncio permanente, mas silêncio sonoro, musical , chuva não cai, diz-se que ´ela vem chegando´, já atravessou o rio….Mesmo de noite, a floresta permeada de elementos musicais incessantes, o barulho dos bichos noturnos, o urro da onça….
Foi durante a ditadura militar que começou a devastação da Amazônia, que hoje felizmente está regredindo. Começou ao norte do Estado de Rondônia, porque o governo dava estímulos e financiamentos para que derrubassem as matas, sem nem mesmo aproveitar a madeira, e para a implantação de uma grande indústria pecuária. Isso eu disse na Alemanha, que era a Volkswagen que estava devastando a floresta, e os alemães ficaram espantados. Mas houve um momento em que o satélite detectou uma grande nuvem de fumaça que cobria 417 incêndios simultâneos e se estendia até o norte do Pará. Então hoje o controle já está sendo feito, mais por iniciativa de instituições internacionais do que pelo nosso governo.
No meu livro Amazônia Menina dos olhos do mundo expressei o meu grande temor de que a floresta terminasse. A sua verdadeira riqueza não está no subsolo, apesar dele conter alguns dos elementos, como o nióbio, indispensáveis para a expansão da era espacial futura. Mas sim na sua fauna e sua flora, na sua biodiversidade genética. Por exemplo, nas mais de duas mil espécies de peixes que só existem lá, nas plantas raras, nos pássaros.
Disse-me um cientista que ao pisar na floresta é possível que se esteja pisando cerca de 1.500 espécies diferentes de seres vivos. Essa riqueza, que ainda não é conhecida totalmente, inclui princípios químicos ativos milagrosos, essenciais ao ser humano. Neste momento, na França, cientistas de vários países desenvolvem o Projeto Alpha, usando fungos e raízes do norte do Amazonas para se tentar encontrar a cura da aids. O laboratório Merck aprendeu que o cientista tem de conversar com os velhos pajés e foi buscar entre os caiapós uma planta que é exclusiva da região, o jaborandi, com a qual pretende em dois anos lançar um colírio que curará o glaucoma.
Como preservar tudo isto? Se cada um de nós fizer a sua parte, será possível exigir do nosso Congresso leis e uma política eficientes. Orque os institutos científicos dedicados à floresta não têm dinheiro. Devemos fazer também convênios internacionais em que o Brasil fique com a parte do leão, na Amazônia.
Termino comentando uma triste notícia, que revela a fera que existe dentro de nós: mais de cem mil garimpeiros invadiram o território sagrado dos ianomanis , que formam a mais antiga nação indígena da América do Sul. Encontrei um garimpeiro em Rio Branco que dizia ´eu tirei o tampo de três, hoje´. Escrevi então um texto dizendo quer cada um de nós é responsável pela porta do extermínio que se abriu para a vida dos ianomanis. Nós ainda nos comportamos em relação a nossos companheiros exatamente como os maiores bárbaros do século 16. Adeus”.
Thiago de Mello, ou Amadeu Thiago de Mello, nasceu em 1926, em Barreirinha, Amazonas. Cursou humanidades em Manaus e já no curso primário descobriu que era poeta. Aos 15 anos transferiu-se para o Rio de Janeiro. Foi redator e cronista diário de vários jornais. Fez numerosos programas de arte e cultura para televisão. Foi diretor de Cultura do Governo do Rio de Janeiro e do Teatro Municipal, Adido cultural do Brasil na Bolívia e no Chile (duas vezes). Perseguido pelo governo militar após 1964, foi preso e obrigado a exilar-se diurante nove anos, no próprio Chile, e também na Alemanha, na França e em portugal, países em que ensinou literatura brasileiraa e latino americana. Tem mais de 20 livros editados, sendo o primeiro “Silêncio e Palavra” (1951) e o último “De uma vez por todas” (1996). Os mais famosos são “Faz escuro mas eu canto” e “Os estatutos do homem”, que já foram publicados em mais de trinta países. Publicou também cinco livros em prosa, sobre a Amazônia. Traduziu vários poetas latino-americanos, entre os quais estão Neruda, Vallejo, Cardenal e Bliseo Diego.
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