fev 08, 2018 Air Antunes Artigos 0
LEVY LISBOA NETO
Desde a tenra idade “sofro corinthianamente” o deleite melífluo de usufruir de alguns “caprichos” socráticos tanto pelos meandros da paixão nacional, o futebol, quanto por meio da arena da realização ideológica da sociedade, a política. Pra mim, a tabelinha socrática entre futebol e política teve início em data memorável: a final do campeonato paulista de 1983 vencida pelo Timão sobre o São Paulo. Aos cinco anos de idade fixo meus olhos na TV pequenina em preto e branco, acomodada sobre a escrivaninha da sala, a ver os primeiros lampejos de uma alquimia cidadã de trejeito distinto: é Sócrates manuseando alternativas magistrais que a vida fornece em favor de estabelecer outro plasmar histórico, a partir de veredas nada habituais.
Como? Conjugando reclamos democráticos com toques subversivos (requintados) de calcanhar, desfilando pelos gramados o arquétipo do não-atleta. Avesso à concentração e à preparação física, Magrão (como os amigos o chamavam) fazia valer o próprio talento de perfil transgressor ao impor um estilo de jogo inventivo, desgarrado de influências táticas mecânicas. Este era o substrato balizador de suas ações dentro de campo, que acabavam ressoando até a esfera política como destino natural. As atitudes e pensamentos do futebolista-cidadão tinham o respaldo do momento histórico, marcado pela saturação autoritária do regime de exceção e ainda influenciado pelos ecos do movimento estudantil contestatório do maio de 68 na França. Movimento que contestava a real necessidade das hierarquias, a suposta naturalidade dada às disparidades sociais, a indiferença às diferenças e a legitimidade do poder constituído.
É com esse espírito, baseado num contexto transformador, que Sócrates emerge como defensor da democracia e de um estilo de jogo singular, quase performático, no âmbito do futebol. Fazia do futebol a arena de divulgação de um estilo de jogo perfeitamente associado às convicções políticas. Isto significa dizer que Magrão caminhava em consonância aos aspectos mais densos e essenciais do agir humano. Mais ainda, o agir de Sócrates pela seara política não institucionalizada, o engrandecia sobremaneira à medida que estabelecia a passagem CONSCIENTE (comprometida) do pensamento (teoria) às ações práticas: movimento imbricado diretamente à noção de animal político (social) defendida por Aristóteles.
Materializava suas convicções teóricas em movimentos perceptíveis, diga-se, com forte impregnação ideológica, como no caso da Copa de 82. Foi capitão de uma verdadeira constelação (Zico, Falcão, Júnior, Leandro, Cerezo, Oscar, Éder) dirigida por Telê Santana, adepto da criatividade libertária, do chamado futebol-arte, que propugnava “jogar pra frente e com talento” em detrimento do perfil pragmático-embrutecedor estatuído no mundo a partir da emergência do futebol profissional. No Brasil, estabelecido de maneira mais contundente a partir da Copa de 94 -, ainda que tal fato tivesse sido minusculamente disfarçado pela genialidade de Romário. Futebol de resultado à La Parreira, de face mecânica e hermética não era sua praia. Imagina Magrão ser tolhido em seu fundamento técnico mais precioso, o passe de calcanhar, devido ao perigo de um contra-ataque de perebas autômatos. Fanfarrice! Assentia e gostava mesmo é da “criatividade inventiva” de face surpreendente e apaixonante.
Dessa forma fazia dos gramados o palco para o protagonismo de suas idéias. Na esteira da filosofia política, entendia o relevo do caráter mobilizador da consciência, enquanto fundamento diretivo e certeiro para imprimir “questões atinentes ao espaço público”. (Bittar, 2008: 26). As palavras de Hannah Arendt em Sobre a Violência ratificam tal propositura: “O que faz do homem um ser político é sua faculdade para a ação; ela capacita a reunir-se a seus pares, agir em concerto e almejar objetivos e empreendimentos que jamais passariam por sua mente, deixando de lado os desejos de seu coração, se a ele não tivesse sido concedido este dom – o de aventurar-se em algo novo. Filosoficamente falando, agir é a resposta humana para a condição de natalidade”. (2001: 59).
E Sócrates usava a condição humana do agir como ninguém! Com capacidade de liderança inata idealizou a democracia corinthiana, foi capitão de uma das maiores seleções da história do Brasil, subiu no palanque do movimento Diretas-Já nos comícios realizados na Praça da Sé, exerceu o cargo de secretário de esportes de Ribeirão Preto e, como comentarista esportivo, foi coerente com as aspirações acalentadas durante a vida. Também “surfou” pelo mundo da arte escrevendo peças de teatro e músicas, além de pintar alguns quadros. Foi admirador e defensor do modelo cubano e amigo de Lula. E é justamente a partir da coerência evidente de seus posicionamentos que evoco um paralelo, talvez plausível, entre os últimos meses de sua vida com as últimas horas de Sócrates, o filósofo, a partir de diálogo descrito por Platão entre este (Sócrates) e Critão (Criton), que tenta demover o amigo de cumprir a sentença de morte proferida pela justiça.
Resumindo: o diálogo discorre sobre o dilema da validade dos critérios morais sob condições adversas. Desse universo advém algumas questões centrais: devemos agir baseados em critérios próprios quando julgamos que uma injustiça está sendo cometida ou devemos sempre confiar nos critérios universais como garantidores da justiça? Podemos em situação extrema abandonar tais critérios morais que defendemos em nome do bem pessoal?
Neste ponto, os Sócrates foram mestres naquilo que denominamos dignidade da pessoa humana: tanto um quanto outro manteve a confiança nos princípios morais. O filósofo, quando preferiu à morte ao exílio, já que poderia escapar da prisão usando subterfúgios que sempre combateu. Manteve-se fiel a suas idéias até o fim: “não cedo a nenhuma outra de minhas razões, senão à que minhas reflexões demonstram ser a melhor”. Para ele, se fugisse estaria cometendo uma injustiça com a pátria, pois “entre fazer mal a uma pessoa e cometer uma injustiça não há diferença nenhuma”. Não cumprir a sentença proferida pela justiça de sua “terra” seria inaceitável.
No caso do futebolista-cidadão, o exemplo moral foi sublime: cogitou-se a boca pequena (pela imprensa) a possibilidade de um último recurso para garantir a vida de Sócrates, o transplante de fígado. Para tanto, Magrão teria de furar a fila do SUS. Mesmo diante de uma situação extrema, o futebolista se manteve tal qual o filósofo, o mais sóbrio dos mortais. Nem por um instante sequer titubeou quanto à decisão a ser tomada, mesmo com parcela da imprensa golpista fazendo terrorismo e aventando possibilidades “esquisitas” em relação ao tratamento.
Este traslado de Sócrates pelos recantos da vida aponta a medida de sua grandeza, a partir de algumas virtudes da bonomia humana, como coerência e dignidade. (Almeida Filho e Souza, 2008: 33). E se voltarmos a Aristóteles, vamos aprender que o futebolista foi na verdade um maestro dotado dos acordes mais intensos da política, ao estabelecer a ética como premissa maior do bem-viver e nos proporcionar, acima de tudo, um MODO DE VIDA comprometido com a busca do próprio destino sob a batuta de qualidades morais elevadas. Foi assim que Sócrates nos fez felizes!!!
Levy Lisboa Neto: pesquisador político, trabalhista e corinthiano.
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