ago 05, 2018 Air Antunes Ilustrada 0
PEDRO GOMES DE SOUZA
Jacinto trabalhava como vaqueiro na fazenda do coronel Narciso, situada nas profundezas do sertão nordestino, além de vaqueiro, também era de sua obrigação tratar dos couros dos bois abatidos. Por esse motivo, os outros vaqueiros apelidaram-no de “Couro de boi”, homem rude, sofrido pela dura labuta sol a sol, mas de coração bondoso, de temperamento sereno. Quis o destino ingrato e o coração inocente, que ele deitasse os olhos para a filha do coronel; donzela morena, de beleza rara chamada Açucena. Essa paixão foi a desgraça do rapaz, o desejo do namoro não foi bem recebido pela donzela. Jacinto ao se apresentar à moça e falar do grande amor que sentia por ela, essa o humilhou, hostilizou. “Você não se enxerga rapaz, acha você, que me casaria com um vaqueiro?! Não seja tão inocente seu ridículo”. O pai da moça virou um bicho quando a notícia chegou até ele, soltou fogo pelas ventas, esbravejou, não mediu palavras do seu grosseiro vocabulário para estraçalhar a alma e os sentimentos do apaixonado e, para desgraça maior ainda, disse-lhe “ajunte tuas tralhas, nojento e suma daqui já, antes que eu faça uma besteira”. O moço ficou arrasado, sem amor, sem emprego e sem moradia. O dedicado vaqueiro acomodou os seus cacarecos num saco velho, e partiu com o coração ardendo de ódio. Couro de boi não tinha parente, então, foi morar debaixo de uma grande árvore muito antiga, que havia na beira da estrada que circundava a fazenda. Transtornado, largou-se na vida, e vivia andando de cima para baixo nessa estrada. Não comia, não se banhava, parecia um morto vivo. No pensamento, Açucena; no coração, o ardor queimante da desilusão. Pela noite, acomodava-se ao pé da árvore, e lá dormia como se fosse os rastejantes bichos noturnos. Muitas vezes acordou assustado, porque sonhava com Açucena em seus braços. Muitas vezes olhou para o céu e via em todas as estrelas o rosto doce e sorridente da amada. Muitas vezes, odiou a moça, mas sempre, sempre em pensamentos pedia-lhe perdão, “me desculpe meu amor, me perdoe”.
Numa noite, não sabendo se sonhava ou, se acordado delirava, apareceu-lhe um estranho homem vestido de preto, e como era uma noite de lua cheia, ele pode ver claramente o indivíduo: alto e bastante esquelético, vestia-se como vaqueiro, indumentária toda preta. Olhos enormes e de um brilho avermelhado, olhar penetrante hipnotizante, cabelos negros compridos reluzentes, mãos magras com longas unhas amarelecidas e um sorriso frio, branco e duro de porcelana. Calçava umas botas estranhas que no olhar nebuloso e atordoado de Couro de boi, pareciam mais patas de cavalos. Couro de boi apavorado quis correr, mas seus músculos ficaram enrijecidos, sem obedecer a qualquer comando cerebral, o coração saltava-lhe à boca, os pensamentos embaralharam-se, paralisaram-se. O fole pulmonar puxava e soprava o ar num árduo vai e vem, os olhos esbugalhados, congelaram-se na imagem do homem, a boca, cerrada de tal maneira que parecia que os dentes iriam se partir. Nas suas andanças pelas matas atrás de gado fujão já tinha visto muita coisa, muita coisa estranha e assombrosa, lobisomem, mula sem cabeça, boitatá, aparições, mas como aquela coisa nunca, nunca mesmo. O medo, o pavor era tanto que ele nem pode controlar a bexiga, e um fio grosso de líquido quente desceu-lhe por uma das suas magras coxas.
– Quem és tu, oh pobre miserável?
Perguntou o vaqueiro negro, com voz mansa e rouca.
Assustado e encharcado de frio suor, com muita dificuldade Couro de boi respondeu, “so, so, sou Ja, Ja, Jacinto, co,conhecido também por Couro de boi.
-E porque dormes debaixo desta árvore?
– Duuuurmo aaaqui por, por, porque não tenho onde morar.
– Imprestável, por que não arrumas tu um trabalho?
– Trabalhava, mas o patrão me mandou embora.
– Então eras tu um péssimo trabalhador, não era miserável?!
– Não! Não! Era um bom trabalhador, mas, fui traído pela paixão, fui deitar os olhos para a filha do patrão, e por causa disso, o “coroné” mandou eu ajuntar os trapos e sumir das vistas dele.
– Ahh! O amor, sempre o amor, arrastando os homens meninis para o abismo da desilusão. E, o que fazias tu lá?
– Era vaqueiro, e também tratava dos couros dos bois abatidos; limpava, esticava em varas, e punha no sol para secar, por isso me apelidaram de Couro de boi.
– Dê-me mais detalhes do ocorrido, pediu o estranho homem.
Jacinto gaguejando, narrou o ocorrido, ao final da narrativa, o vaqueiro negro, gargalhou intensamente e tão estridente, que Jacinto tapou os ouvidos, e esbugalhou ainda mais os olhos.
– Ainda queres esse amor tu?
– Qualquer coisa faria para ter.
– Ummm! Mesmo, qualquer coisa mesmo?
– Sim senhor, qualquer coisa!
– Vamos fazer então um trato, um pacto.
– Um pacto, como assim!?
– Um pacto de troca, respondeu o vaqueiro negro com voz rouca adocicada e esfregando as mãos uma na outra, de satisfação.
O estranho vaqueiro explicou o trato: recolocá-lo-ia de volta na fazenda, ele teria novamente a confiança do coronel Narciso. A moça iria se apaixonar por ele, e pediria perdão pelo que ela e o pai o fizeram e, em breve eles se casariam. A minha paga por este trabalho será a troca, e o produto desta troca será a tua filha primogênita. Se você concordar com o pacto, eu cumpro com o tratado, mas agora, caso você não cumpra com o teu, quebre o acordo, eu te transformo em um bicho voador parecido com um couro de boi esticado, um grande morcego.
Jacinto ainda desorientado, e só pensando em ter o amor de Açucena, nem pensou duas vezes. Com a paixão dilacerando o coração, turvando os pensamentos, e a sede de vingança envenenando suas veias, de pronto aceitou o trato. Nem quis saber o porquê da ajuda.
Já no dia seguinte, o coronel mandou um dos vaqueiros chamá-lo, juntou-se a filha e foi recebê-lo, pediram-lhe perdão de joelhos e aos prantos. Deu-lhe o trabalho de volta, e em pouco mais de um mês, o vaqueiro já estava com as atividades de capataz sob sua responsabilidade, casamento marcado para dali a três meses. Açucena e Jacinto se casaram, a cerimônia foi na sede da fazenda, celebrada por um padre vindo da capital da província. O coronel deu uma grande festa, “comes e bebes” à vontade e muito arrasta-pé, três dias de festança. O casal foi morar na sede da casa grande, assim ficava mais próximo do coronel, já que esse era viúvo. Açucena engravidou no decorrer de quatro meses, Jacinto estava feliz com o trabalho, todos os vaqueiros o estimavam, o rebanho tinha aumentado, a fazenda dando bons lucros e um filho que estava por vir. O coronel cobriá-lo de elogios o tempo todo, todos estavam felizes. Açucena numa noite teve um sonho ruim que ao contá-lo para o esposo, foi como um coice de mula dentro da cabeça dele. No sonho, um vaqueiro negro vinha para levar embora assim que nascesse, o bebe que ela esperava, que era uma menina.
– Foi apenas um sonho ruim, mulher. Esqueça isso, tentou acalmar a esposa.
No entanto, dentro da sua cabeça, formou-se um furação monstruoso de incertezas, lembrando-se do pacto, entrou num desespero infernal, mas guardou o segredo. Quis procurar ajuda, mas, de quem? E quem acreditaria nele? E com o passar dos dias ele se acalmou, e esqueceu o sonho da esposa e o pacto com o vaqueiro negro. “Ah! Isso tudo é uma grande bobagem, pura bobagem” pensava ele
No oitavo mês, Açucena teve dores de parto, e veio a dar a luz. Mesmo fora do tempo nascera um lindo e saudável menino. Jacinto se lembrou – “primogênita”-, que alivio! O sonho da esposa fora apenas um sonho ruim. Passaram-se três anos, todos estavam felizes, Jacinto esqueceu da noite assombrosa, do encontro com o estranho vaqueiro debaixo da grande árvore, e quando esporadicamente se lembrava, refletia “aquilo foi um delírio, deixa de bestagem homem”.
Liberto como fora batizado o filho, estava saudável, muito bonito, o coronel não cabia dentro de si de tanto amor e orgulho do neto. Todos o amavam, era um garoto bastante carismático, inteligente e conversador. Todos felizes estavam. Quando Liberto completou quatro anos, Açucena engravidou outra vez. Foi uma grande festa na casa grande, todos torciam agora por uma menina.
Foi num momento de inspeção dos trabalhadores quando Jacinto verificava os couros dos bois espichados em varas secando ao sol, que ele se lembrou do vaqueiro negro. Tudo veio na sua mente de repente. Imagens repetidas como flashes iluminando a sua memória. Uma nuvem negra assombrou os seus pensamentos e ele ficou sem chão, tudo abaixo dos seus pés desmoronou como um terremoto devastador. E, ele caiu nesse abismo sem fim de desesperança. Nos últimos tempos, andava tristonho, e muitas vezes, foi visto olhando o nada no horizonte. Nas noites, tinha constantes pesadelos e estes, esmagavam-no, afundavam-no no colchão roubando seu sono, roubando seu descanso, e ele cada vez mais se afundava no poço escuro do desespero. Couro de Boi quis falar com o coronel sobre o pacto, mas ficou com vergonha, quis contar para a esposa, não contou com medo que isso atrapalhasse a gravidez. Quis contar para um dos vaqueiro mais velho da fazenda, chamado João, o qual tinha grande admiração, no entanto, ficou com receio porque o velho vaqueiro era muito supersticioso, poderia ir embora da fazenda e com a idade avançada não arrumaria outro trabalho. Sua mente era um caldeirão fervente de dúvidas. Sem saída, correu à igreja, procurou ajuda do padre Damião. O cônego descreu dele, e disse-lhe ”filho vá para sua casa e reze, reze bastante, porque o senhor está mais perturbado do que Judas quando percebeu o que tinha feito com o filho do homem.”
O homem seguiu os conselhos do bom religioso, no entanto, de nada adiantou, os sonhos ruins agora eram com mais frequência, e maior intensidade; e conforme a barriga de Açucena crescia, também crescia o seu pavor, o seu desespero. Açucena percebendo as noites agitadas e a mudança de comportamento do marido, foi falar com ele, mas ele se fechou no casulo de segredo em que se encontrava. A esposa então procurou ajuda junto ao pai, e esse chamou o capataz para conversar.
Falou que queria ver o gado, “vamos dar uma volta, quero ver o rebanho”, disfarçou. Cavalgando lado a lado, com cuidado e muita astúcia, o coronel adentrou no assunto, Jacinto se assustou, mas abriu seu desesperado coração e narrou o ocorrido debaixo da grande árvore, naquela passada noite, mais ou menos cinco anos atrás. O coronel gargalhou da tamanha estupidez. “deixa disso meu rapaz, ocupe-se com os seus afazeres, isto tudo é pura bobagem, superstição”, aconselhou o sogro. Jacinto acatou o conselho.
Num dia bastante chuvoso, Açucena deu a luz a uma linda menina, saudável, olhos ajabuticabados, cabelos castanhos claros. Açucena e o pai estavam felizes, um filho e uma filha, um neto e uma neta, já Jacinto estava no abismo do desespero, aguardando o momento em que o vaqueiro negro iria aparecer.
Não demorou muito. Na primeira semana do nascimento da primogênita, Jacinto teve que ir até o vilarejo resolver assuntos da fazenda, na volta já anoitecendo, quando passava pela grande árvore onde morou, deparou com o vaqueiro. O cavalo relinchou, empinou, atirou o capataz longe, e saiu em disparada. Jacinto se levantou atordoado, o estranho ser se aproximou e disse-lhe “sabes por que estou aqui?” Jacinto perdido não respondeu. O vaqueiro negro tornou a perguntar, agora um tanto ríspido “Sabes? Se não sabes posso lembrá-lo”. Estou aqui para receber a minha paga, é chegada a hora.
Jacinto se encheu de coragem, encarou o vaqueiro negro, disse que não, disse que não permitiria tamanho absurdo, que naquela noite debaixo da árvore estava atormentado e por isso aceitou o pacto, e que ele se aproveitou da sua fraqueza, enganou, e que ele voltasse de onde ele veio, que deixasse ele e a sua família em paz. Não iria permitir nunca o sofrimento da esposa, do filho e do sogro, nunca, nunca permitiria. E, não acreditando ser possível o vaqueiro negro cumprir com o que foi acordado, disse com voz firme, “prefiro virar couro voador.”
Ao dizer isso, o vaqueiro negro deu uma grande gargalhada, levantou os dois braços, um vento forte soprou balançando as arvores, levantando folhas secas em um redemoinho de poeira.
“Pobre alma miserável se é o teu desejo que se faça”, disse o estranho ser, e apontando a mão esquerda para o capataz direcionou um feixe de intensa luz no peito dele.
Jacinto recebeu o impacto luminoso, não teve tempo nem de reagir, a luz incandescente penetrou em suas carnes, uma dor dilacerante se apossou do seu corpo, a luz envolveu-lhe, Jacinto se contorceu, se contorceu, se contorceu, olhou para o vaqueiro negro que agora gargalhava, transformado num facho de fogo rodopiante, e gritou com toda força de seus pulmões “Valentiiiina!” nome de batismo da primogênita.
O feixe de luz foi diminuindo até se apagar, e um enorme animal estranho bateu as enormes asas e voou para a copa da grande árvore.
A bola de fogo rodou, rodou numa grande velocidade para cima para baixo, da esquerda para direita, e com uma gargalhada aterrorizante, sumiu.
Na fazenda todos se perguntaram “onde está o capataz?”, pois só chegou o cavalo, e até hoje, não se sabe o paradeiro de Couro de boi, apesar das várias buscas pelo vilarejo e pelas redondezas da fazenda, nada se encontrou.
Couro de boi vive na copa da grande árvore, conforme o pacto que ele não acreditou, nas noites de lua cheia bate as enormes asas e sobrevoa os pastos e a casa grande como quem procura a alma perdida. O vaqueiro João contou para o coronel, que desde o sumiço do capataz, nas noites claras, tem visto um pássaro estranho voando sobre o pasto, vindo não sabe de onde. Várias vezes, Açucena ao ir ao vilarejo com os filhos e o pai, ao passar por debaixo da frondosa árvore se arrepia toda, ouve uma voz interna, no subconsciente, “Açuceeeena”, voz profundamente abafada. Um grande remorso bate-lhe no peito. Couro de boi da copa da árvore, com a alma presa no grande couro voador, olha-os com grande admiração, uma grande dor rasga-lhe o peito, e secas lágrimas descem pelo seu rosto de couro seco.
Pedro Gomes de Souza , morador em Angatuba, professor.
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