nov 28, 2016 Air Antunes Politica 0
RICARDO JOSÉ DE AZEVEDO MARINHO
Empossado na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo como deputado da bancada do partido Comunista do Brasil (PCB) em 22 de novembro de 1947 e cassado seu mandato em 12 de janeiro de 1948, Mario Schenberg, um dos maiores físicos e estetas da história brasileira, ainda não teve o reconhecimento da importância de sua passagem pelo parlamento paulista. E, quem sabe, talvez por isso (e não só por isso) devemos destacar tal momento do conjunto da obra do nosso político. Ou seja: o político não nasce da lavra de crítica estética de Mario Schenberg nem tampouco da sua teoria da física, mas é, nitidamente, um trabalho de reforma social. Entretanto, o procedimento de tomar o parlamentar Mario Schenberg à parte, tem problemas , pois mesmo a produção propriamente política. Daí, que ao optarmos pela questão do petróleo brasileiro e ficando apenas nesse ponto, ajuda-nos , por exemplo, a entender a distinção entre o pensamento social e político brasileiro pré e pós-fundação da Petrobrás, e torna um tanto secundária a discussão em que, a esse respeito, se envolvem alguns de nossos contemporâneos. E por isso, acreditamos que vale a pena tentar, heuristicamente, fazer uma análise até certo ponto “isolada” da política do petróleo brasileiro de Mario Schenberg no Parlamento paulista, pelos motivos que procuraremos explicitar ainda mais doravante.
Podemos agora iniciar o nosso argumento. Para isso, gostaríamos de lançar mão de Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974) do professor Carlos Guilherme Mota. Neste livro, chama-nos a atenção à noção de radicalidade presente no nosso autor. Carlos Guilherme Mota atribui a Mario Schenberg uma radicalidade transformadora da cultura brasileira, aponta os fatores responsáveis por tal posição catalisadora, mas-este é o ponto fundamental-, lembrando que suas estéticas só foram efetivamente assimiladas pelo “corpo social” décadas depois. Aqui nos permitiremos uma analogia. Discutiremos mais adiante os significados da radicalidade da política do petróleo de Mario Schenberg no Parlamento Paulista, e queremos sugerir que, em que pesem os trabalhos que enaltecem o físico e o esteta, o real impacto do político em sua obra ainda não se fez sentir. Estamos diante de louvações, de intenções, mas de resultados concretos hesitantes e esparsos sobre a produção a respeito de Mario Schenberg em nossos dias. O impacto reduzido , ou melhor, a sua ausência, se explicaria , a nosso ver, por ser a obra de um intelectual múltiplo, visto como um outsider, sem relação com as importações do político consideradas legítimas, em geral restritas à física e/ou estética. Outros poderiam sugerir uma segunda razão: o Mario Schenberg político foi marcado por um “estigma de origem” (o comunismo), que tanto naquele tempo como hoje equivaleria a um certificado de óbito. Ora, o próprio Mario Schenberg refere-se – a certa altura do seu segundo discurso (foram quatro ao total) em que trata das influências intelectuais- à contribuição da abordagem lúcida de O Escândalo do Petróleo de Monteiro Lobato, para estudar as raízes do problema do petróleo brasileiro. Ou seja, parte de nossa geração aceitou, como as gerações recentes, o emprego da abordagem tipo “o comunismo morreu”.
Entretanto, não cremos, portanto, se este o motivo para a ausência de difusão, entre a intelectualidade e a sociedade brasileira, das lições contidas na política do petróleo de Mario Schenberg no Parlamento Paulista.
Mas, ainda assim, não é este o lugar para vaticínios. Queremos aqui apenas alinhar algumas dimensões marcantes da política do petróleo de Mario Schenberg no Parlamento Paulista, que denotam sua radicalidade constitutiva. Pois quem quiser entender a questão do petróleo no mundo e não apenas no Brasil, terá sua visão aguçada pela leitura de seus discursos, e terá uma visão retrospectiva que se projeta, heuristicamente, para o futuro. Logo, o aspecto que dá projeção duradoura à política do petróleo de Mario Schenberg no Parlamento Paulista resulta de um compromisso ético-político, de denúncia da passividade e subserviência no Governo Dutra e de crítica ao domínio imperialista. A tessitura fina de Mario Schenberg permitia a audiência à época (e aos leitores de ontem, de hoje e de amanhã) penetrar aos poucos na densa matéria social- haja vista a discussão do dilema de Carlos Lacerda, a saber, a entrega da exploração de petróleo aos ianques ou nada fazer-, para tocar fundo, por fim, nas raízes mesma de debilidade da redemocratização de 1945, sem que para tal viagem ele seja conduzido por um tom irracionalmente raivoso de denúncia, que daria aos discursos uma feição particular, datada e localizada. Nesses termos, qual será o impacto dos discursos de Mario Schenberg ?
MOTIVOS& ESTRATÉGIAS
Quando na 117ª Sessão Ordinária nos idos do dia 9 de dezembro de 1947, os deputados da Assembléia Legislativa paulista foram convidados pelo Centro Acadêmico XI de Agosto a apresentar publicamente suas propostas para a questão do petróleo, o recém-empossado deputado Mario Schenberg expressou , através de um discurso memorável, sua orientação a respeito do tema e uma nova forma de argumentação parlamentar, que acabou se impondo somente no decorrer do processo contra o seu partido e seus pares.
Partindo dos resultados da historiografia sobre a “redemocratização” que cobre o período de 1945-1964, a orientação de Mario Schenberg parece comprovar que a questão do destino do petróleo, em dezembro de 1947, era especialmente apta a evidenciar os antagonismos entre os comunistas e os anticomunistas, por isso, o debate entre os dois grupos oferece um fio condutor fácil de ser acompanhado através dos acontecimentos complexos e precipitados dessa época.
É exatamente essa fase de tomada de consciência de interesses coletivos opostos e sua transformação em identidades de grupos políticos que pretendemos analisar a seguir , tomando a questão do petróleo como o exemplo por excelência. A nossa perspectiva implica que o processo contra o PCB e seus deputados não ganha sua importância histórica enquanto preparação da cassação do seu registro e/ou dos mandatos dos seus deputados, mas enquanto etapa na transição de uma política (como, por exemplo, a do petróleo) vista como discussão de pessoas privadas, intelectualizadas, para uma política praticada como luta pelo poder na defesa de interesses sociais.
Assim é possível entender por que os discursos do deputado Mario Schenberg atinaram para o fenômeno de que cada posicionamento sobre problemas políticos e/ou jurídicos foi sobreposto, cada vez mais , pela auto-apresentação dos respectivos oradores, especialmente quanto à vinculação da questão do petróleo brasileiro com a cassação dos mandatos dos deputados comunistas.
Evidentemente, poderíamos objetar a essa leitura o argumento de que os discursos de Mario Schenberg não se referiam a uma situação específica e inesperada, mesmo tratando-se do ano de 1947.
Qualquer atuação social- e não apenas o discurso político- implica necessariamente em auto-apresentação, sendo que o seu sucesso, a saber, a co-atuação dos outros da maneira desejada pelo ator, depende amplamente da adoção ou rejeição do ator pelos co-atores potenciais. A importância desse fato, fundamental para o desenvolvimento de estratégias de ação , foi ressaltada por teóricos da ação (da linguagem) como Habermas.
Se os deputados paulistas, nos últimos meses de 1947 e no início de 1948, ao menos tivessem apenas aproveitado a chance , disponível em todos os tempos de aumentar suas perspectivas de sucesso parlamentar através do cultivo de sua imagem, Mario Schenberg difícilmente teria notado o crescimento quantitativo da sua auto-apresentação.
Quem quer preservar sua imagem? (ou a imagem daquele grupo no qual se inclui em sua auto-apresentação) é obrigado a tornar plausível a compatibilidade de sua própria história, como parte de um passado complexo de interações, com uma ação que lhe foi imposta em um determinado momento pelo mesmo passado. Segundo Ervin Goffman, nem todas as práticas do cultivo da imagem, mas apenas algumas formas impostas da sua preservação são associadas à apresentação verbal da identidade. A seguinte interpretação dos discursos de Mario Schenberg sobre a política do petróleo no Parlamento Paulista apresentará as identidades (públicas) diversas em contextos de ação diversos, e já constatamos que a função dessas identidades consiste em possibilitar a cidadania à dedução de expectativas quanto às ações previsíveis dos indivíduos, atribuindo a esses indivíduos uma sequência coerente de ações no passado. Partindo dessa suposição sobre a função da identidade e concebendo os papéis como conjuntos significativos institucionalizados que orientam as ações e que correspondem a determinados sociais (identificando também as ações), podemos definir a identidade de indivíduos e grupos como o “feixe de papéis”, que resulta de sua história e ganha uma função específica em um determinado momento da sua história de interações: enquanto orador na Assembléia Legislativa. Mario Schenberg tem que fazer jus às exigências feitas ao papel a ser desempenhado por todos deputados.
No entanto, Mario Schenberg também quer se apresentar como pertencendo ao campo comunista, cuja unidade se baseia no postulado do agir comum no passado, ou seja, adotando outro papel. Apenas através dessa identificação (nada exaustiva) de papéis foi possível atribuiu diversos tipos de identidade a Mario Schenberg e desenvolver expectativas de ação ao seu respeito.
Assim, pode-se dizer que a preservação da imagem passar pela “apresentação da imagem”, isto é, evidenciando a coerência dos papéis nela integrada. E é exatamente sobre isso que passaremos a discorrer.
A HISTÓRIA PRECEDENTE
Afirmamos que os oradores que aparecem nos exemplos das teorias das ações de linguagem podem “escolher” livremente as formas de sua auto-apresentação, por não possuírem história. Agora teremos que explicitar melhor as suposições pressupostas dessa afirmação quanto à relação entre história e auto-apresentação para os indivíduos e grupos.
Qualquer manifestação de comportamento, por exemplo, o discurso de Mario Schenberg, é interpretada dentro de contextos de ação diante dos deputados, do público e, de modo geral, dos paulistas e demais brasileiros politicamente interessados da época da “redemocratização” , como realização de determinados papéis e é transformada em uma série de expectativas de comportamento.
Disso segue que, no decorrer de uma história de interações, o repertório de papéis disponíveis (ou então, de manifestações lícitas) se torne cada vez mais restrito; em outras palavras: diminuem as possibilidades de fazer diferenciações ou modificações em histórias interpretadas através de novas ações. Essa história, que se formou através das manifestações de um indivíduo no decorrer de uma história de interações e que restringe sua margem de ação em um momento dado (em um determinado contexto) da interação, chamaremos de história precedente.
Mas, qual era a história precedente da política do petróleo de Mario Schenberg?
Dando sequência ao discurso proferido na 117ª Sessão Ordinária, nos idos do dia 11 de dezembro de 1947, na 119ª Sessão Ordinária, Mário Schenberg nos apresenta a origem da sua política do petróleo. Dirá ele:
“Já antes li, aqui, o apelo que nos foi dirigido pelo Centro Acadêmico XI de Agosto e pelos presidentes dos dois partidos tradicionais da Faculdade de Direito. E já ex0pliquei também aqui qual a posição, em linhas gerais, do PCB em relação ao caso do petróleo: nós , de maneira alguma exigimos o monopólio do Estado para a indústria petrolífera.
Desejamos, apenas, que a refinação e a distribuição do petróleo seja monopólio do Estado, podendo capitais nacionais e, mês,o, estrangeiros participarem da pesquisa e da lavra das minas desse precioso combustível.
Antes de entrar na análise dos quatro projetos de lei que a bancada do Partido Comunista do Brasil apresentou à Câmara Federal, quero fazer um breve resumo da história da pesquisa do petróleo no Brasil”.
Com essa colocação, ele inicia a história precedente da sua política do petróleo nos anos 1930, se vinculando a Monteiro Lobato e a sua obra pioneira de forma similar à que fizera Caio Prado Júnior, líder da sua bancada à época:
“De modo que, Srs.Deputados, concluíram que, no Brasil, não havia petróleo, alegando razões como as que indiquei. Mas os brasileiros patriotas não se guiaram pelos argumentos dos Srs. Malamphy e Oppenheim. E, aqui, temos a destacar a atuação de Monteiro Lobato, que publicou, então, seu livro famoso Escândalo do Petróleo,”
Assim, as histórias que eram precedentes para a política do petróleo de Mario Schenberg pela história do petróleo e do comunismo brasileiro podem ser descritas de acordo com as fases sucessivas de sua constituição, conformando-ser a hipótese de que a diversidade das histórias não exclui a concordância de determinados papéis e manifestações.
Pois os membro das frações comunistas e anti-comunistas, que se formaram durante 1947/1948, haviam agido em conjunto durante longas etapas, desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial. Ambas tinham transformado, através da constituição da Assembléia Nacional Constituinte de 1946, a forma de discussão da esfera pública numa instituição política, impondo a todos os deputados o papel de membros de um intelectual coletivo de novo tipo.Em 1946, os membros da Constituinte haviam votado em bloco pela proclamação da nova Constituição e instituído como obrigatório um conceito bem definido do deputado, a saber, o do democrata e republicano, responsável em todas as suas ações políticas perante o povo enquanto soberano e avesso a qualquer despotismo. Na situação particular pós-Constituição de 1946, nos idos de 1947/1948, o papel comum a todos os deputados e a nova forma de sua realização implicavam numa série de outras obrigações comuns.
A vinculação implícita desse conceito de democracia ativa (isto é, a favor de uma determinada definição de república) correspondia à vinculação ampla do agir político de Mario Schenberg e seus pares nas reuniões da bancada comunista na Assembléia Legislativa paulista; as manifestações individuais dessa vinculação foram integradas no papel dos amigos do povo oprimido, apresentadas no Parlamento e apoiadas, com muito fervor, pelo público.
A relação antagônica entre as frações em processo de formação e a manutenção do princípio sempre propagado da “democracia passiva” permitiu aos anticomunistas se apresentarem, por sua vez, como representantes de todo o povo brasileiro (e não apenas do povo oprimido do Brasil). Os anti-comunistas culpavam os comunistas de negligenciar, devido ao seu compromisso com as classes subalternas, o restante do Brasil, além disso, os acusavam de induzirem a violência, denunciando-os como sedutores sanguinários do povo. Em compensação, o engajamento dos anticomunistas a favor da burguesia (em boa parte antidemocrática) permitiu aos comunistas condená-los como defensores disfarçados do antigo regime. Das histórias precedentes temos que distinguir as ações impostas que indivíduos com as mesmas histórias globais de interação são obrigados a adotar, quando querem manter sua meta de ação também após uma mudança das condições gerais para sua realização.
Por outro lado, em qualquer história de interação, a posição dos oradores que procuram a cooperação do público é favorecida quando se apresentam como imparciais. Seja como for, como se daria a defesa da imagem e a apresentação da identidade e da identificação?
A APRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE
Até aqui podemos resumir o nosso raciocínio da seguinte maneira: a imagem de indivíduos e de grupos corre riscos, quando as ações deles exigidas se evidenciam como incompatíveis com as suas histórias preestabelecidas.
A constituição de identidades, como mostram tanto a nossa experiência do dia-a-dia quanto os discursos de Mario Schenberg, passa pela explicitação gradativa da própria identidade enquanto conjunto de papéis que nascem da história de interações, recorrendo inclusive ao processo de identificação dos papéis de identidades alheias.
Evidentemente, os discursos já mobilizados e a convocar não expõem todas as camadas das identidades próprias ou alheias , ainda mais que não servem apenas à preservação da imagem, mas também ao objetivo da persuasão.
Uma vez que a identidades apresentadas e as identificadas, enquanto estruturas complexas, apenas se evidenciam no final dos discursos, apesar de seu conhecimento ser uma condição essencial para a análise dos processos de preservação de imagem através da explicitação gradativa de identidades, dividimos a interpretação dos discursos de Mario Schenberg em duas abordagens. Em primeiro lugar, procuraremos fazer uma apresentação sincrônica das estruturas das identidades apresentadas e identificadas e de suas relações mútuas, que as fazem aparecer, nos dois discursos, como estruturas no mínimo semelhantes, para mostrar, em segundo lugar, como a preservação da imagem se dá através do desdobramento sucessivo dessas estruturas globais. Para isso Mario Schenberg dá sequência ao discurso proferido na 119ª Sessão Ordinária, e em 15 de dezembro de 1947, na 122ª Sessão ordinária, ele mais uma vez sintetiza seu ponto desta forma:
“Vou prosseguir, hoje, na análise do problema do petróleo no Brasil, que já vinha fazendo anteriormente mais que não foi possível concluir, por falta de tempo. Para retomar o fio da minha análise, recordarei alguns pontos essenciais. O problema do petróleo no Brasil começou a ser discutido depois de 1930. A princípio e até então as companhias petrolíferas e os trustes integralistas procuravam fazer uma campanha derrotista, dizendo, por exemplo, que o Brasil não podia ter petróleo, porque a sua produção exigia terrenos vulcânicos, e não tendo o Brasil vulcões, consequentemente, não podia ter petróleo. Aliás, campanhas semelhantes fizeram-se vários outros países do mundo. Também, naquela ocasião, o nosso Governo contratou técnicos estrangeiros, os Srs. Malamphy e Oppenheim, e sobre esses contratos até já houve escândalo, porque esses senhores , enquanto trabalhavam para o Governo, publicavam anúncios em revistas técnicas- revistas inglesas e americanas- oferecendo seus serviços a quem quisesse comprá-los. Isto alarmou a opinião pública, e então o Governo fez a defesa desses senhores, defesa essa feita em relatório oficial, de autoria do então Ministro Odilon Braga, publicado em 1936, e no qual se dizia que, tendo sido contratados apenas por um ano, já precisavam procurar outro emprego para depois e, por isso, publicaram aqueles anúncios nas revistas, oferecendo seus serviços a quem quisesse alugá-los.
Quem deu maior impulso à campanha do petróleo no Brasil foram dois grandes patriotas: o escritor Monteiro Lobato, com o seu livro Escândalo do Petróleo, e o Sr. Oscar Cordeiro, um homem de negócios, baiano, que tentou obter petróleo em Lobato, depois de 1938, quando era subchefe no Estado-Maior do Exército o General Oscar Horta Barbosa. Aliás, foi por iniciativa deste general que foi proposta a criação do Conselho Nacional de Petróleo, e efetivamente criado em 1938 creio que no mês de setembro. Foi tão acertada a fundação do Conselho Nacional do Petróleo, que já no ano seguinte jorrava petróleo do solo brasileiro, constituindo tal dia, realmente uma data das mais auspiciosas para a nossa história econômica.
Analisei também, os dados oferecidos pelo General João Carlos Barreto, atual presidente do Conselho Nacional do Petróleo, mostrando que para instalar uma refinaria no Brasil de 10.000 barris diários, bastariam dez milhões de dólares, sendo o consumo do Brasil atual, mais ou menos de 44.000 barris. Bastaria, pois, instalar umas quatro ou cinco refinarias, para que se pudessem atender todas as necessidades. E essas refinarias, se fossem instaladas quatro apenas, ficariam em oitocentos milhões de cruzeiros, e dariam, um lucro anual de 66% do capital.
Agora quero me aprofundar mais no exame da questão, examinando o total dos capitais necessários para o desenvolvimento da indústria petrolífera no Brasil. Não apenas à questão das refinarias e da distribuição, que já examinei, seriam necessários oitocentos milhões de cruzeiros, mas mesmo o total necessário para desenvolver toda a indústria petrolífera, não é a quantia inacessível ao Estado e ao povo brasileiro. Assim, de maneira nenhuma se torna indispensável recorrer a capitais estrangeiros para isso, se bem que nós, os comunistas, não sejamos contrários a que capitais estrangeiros participem da lavra, mas o somos em relação a refinarias, porque a refinaria e a distribuição comercial são exatamente, a parte mais rendosa e d todo o interesse. Por isso achamos que essas companhias não devem exportar os lucros fabulosos, que devem ficar no Brasil quando, com capital ilimitado, pode-se obter isso”.
Parece fazer parte das características históricas da época da “redemocratização”, entre 1945 e 1964, que a identidade a ser apresentada e a ser identificada no sistema político deveria ser bastante abrangente (mesmo os papéis da vida privada tornaram-se relevantes para a identificação política), e que a identificação de um único papel por um valor negativo acarretava normalmente o “desencapuzar” do ator, isto é, a identificação da sua identidade global como inclinada ao despotismo.
Conclui-se , portanto, que a política do petróleo de Mario Schenberg no Parlamento Paulista cumpriu o papel de registrar o caráter excludente do regime que se define em 1947, significa acrescentar uma dimensão relevante à descrição de sua objetividade. A exclusão dos comunistas não é o avesso (o negativo) da ordem semidemocrática da República liberal (uma espécie de custo, incompletude e/ou limitação), mas um fator indispensável ao seu funcionamento, um aspecto necessário daquilo que ela é. E excluir os comunistas implicava excluir o petróleo, pois os comunistas são petroléu (óleo de pedra) da democracia, donde, não se diz o que ela é omitindo a presença eficiente desse fator.
Então, como fechar um argumento que convoca os discursos de Mario Schenberg no Parlamento Paulista a respeito do petróleo brasileiro? A resposta a esse pergunta implica em vermos no último movimento como ele constrói magistralmente a sua identidade e do que isso significava para a democracia brasileira.
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
Antes de convocarmos o último discurso de Mario Schenberg sobre a política do petróleo, recapitularemos , em perspectiva diacrônica, os objetivos propostos pelo orador.
Mario Schenberg estava diante da tarefa de convencer os deputados indecisos a se manifestarem contra a cassação do seu mandato e dos seus pares. O papel designado a Mario Schenberg, portanto, implicava a tarefa de antecipar-se à um ataque provável e de defender-se através da construção verbal de sua identidade..
Para alcançar seus objetivos , o orador insere na situação comunicativa por ele construída uma dupla captatio benevolentiae, identificando as intenções da Assembléia Legislativa paulista basicamente com o valor positivo do sistema político democrático e apresentando-os como co-responsáveis por aquelas ações do Parlamento que, segundo sua própria interpretação , não são compatíveis com o papel ideal apresentado, como fica evidenciado no tratamento dado ao aparte do deputado Antônio Camargo Pinheiro Júnior do Partido Social Progressista (PSP do governador Adhemar de Barros.
“O Sr. Pinheiro Júnior- O assunto sobre o que V.Exa. discorre no momento ,é de alta relevância. Quero congratular-me com C. Exa., porquanto percebe que já era tempo de o nosso Governo tratar do problema do petróleo no Brasil, Esta é uma necessidade inadiável.
O Sr. Mario Schenberg- Agradeço muito o aparte, V.Exa. está compreendendo toda a importância dessa questão”.
Mario Schenber se aproveita dessa identificação para pressupor, com fato consumado, que todos os parlamentares concordassem com ele na opinião de que a cassação dos mandatos dos deputados comunistas já estava em sintonia com a política do petróleo defendida por sua bancada a nivel federal e estadual.
Sua exposição acaba com uma auto-apresentação como intelectual imparcial- o que equivale, em sua função, a uma auto apresentação como juiz justo-, que sublinha novamente a atitude de pertencer à Constituição de 1946, identificada visceralmente como a democracia e a república.
Após essa breve rememoração, podemos introduzir o discurso proferido na 125ª Sessão Ordinária, em 18 de dezembro de 1947, no qual Mario Schenberg apresenta ao Parlamento Paulista o Decreto Federal Nº 24.067, de 17 de novembro de 1947, para que este se identifique ainda mais como ele e sua bancada, de acordo com seu papel político e normativo:
“Sr. Presidente, Srs. Deputados. Vou hoje continuar a examinar o problema do petróleo. O Caso torna-se mais interessante. Acaba de ser publicado no Diário Oficial, da União, o Decreto Nº 24.067. Não disponho do Diário da Oficial da união, mas vou reproduzir a notícia publicada no Jornal de Notícias de quarta-feira, 17 de dezembro”.
O que dizia a notícia sobre o decreto em tela:
“Diz a notícia: ´Organizada em Nova Iorque uma empresa para explorar o petróleo brasileiro, o Sr. Nelson Rockfeller entre os diretores da ´International Basic Economy Co.´. Já foi autorizada a funcionar em território nacional, Ri0 16- O Diário Oficial de hojevem publicar o texto do Decreto Nº 24.067, que concede à Sociedade Anônima ´International Basic Economy Corporation´, com sede em Nova Iorque, autorização para funcionar no Brasil. São diretores da companhia os Srs. Nelso Rockfeller, Wallace Harrison, Berent Priele, Francis Jamisson e John Lockwood. O decreto é muito longo e verifica-se que a finalidade da companhia , consubstanciada nos seus artigos e parágrafos, tem como objetivo precípuo a exploração do petróleo brasileiro”.
Evidencia-se assim que Mario Schenberg, desde o início, identifica, com justificativas variadas, os possíveis argumentos a favor da decisão que está combatendo com o valor negativo do sistema político brasileiro, pressupondo, portanto, como irresolvida a questão de qual posição o Parlamento Paulista teria que tomar.
Embora a renúncia à deliberação seja acobertada na estrutura interna do discurso pelo fato de Mario Schenberg ter pressuposto, através da identificação inicial do Parlamento Paulista com seu papel ideal, uma concordância de todos os parlamentares com os conceitos jurídicos dos comunistas, ele se coloca, com essa renúncia , no papel retoricamente desfavorável. Esse papel implícito à estrutura do discurso- porém provavelmente não reconhecido por Mario Schenberg- de um professor (que, a partir de uma postura pedagógica, pressupõe a boa vontade do público) contradiz a estratégia explícita de sua auto-apresentação, pois a oposição entre os pólos comunicativos do “professor” e dos “alunos”, própria à situação do ensinamento, substitui, sem a mínima mediação, a situação de solidariedade dos deputados, que estaria caracterizada pela cidadania política, com o Parlamento no seu papel ideal. A partir da distância entre o “professor” e os “alunos”, o Parlamento é lembrado dos seus deveres em relação ao povo (que, nessa primeira parte do discurso, ainda não é identificado nos termos de sua situação específica), é alertado mais uma vez face ao que estaria por vir:
“Mas esse decreto autoriza essa Companhia a extrair e processar qualquer espécie de matéria prima, de maneira que inclui também o petróleo. O nome que figura à frente dessa Companhia, já é bem nosso conhecido: é o do Sr. Nelson Rockfeller, da tradicional família do truste petrolífero. Como o próprio jornal indica, essa empresa , organizada em Nova Iorque, tem como finalidade explorar o petróleo brasileiro. Vemos, pois, que o nosso governo acaba de autorizar uma empresa estrangeira a explorar o nosso petróleo.
De maneira que, meus senhores, as denúncias que vínhamos fazendo, de que se pretendia entregar o nosso petróleo a empresas estrangeiras, está agora encontrando confirmação nos próprios atos do Governo Federal.
É muito curioso que esse decreto tenha sido assinado exatamente nestes dias, em que os senhores do grupo fascista, que estão à frente do nosso Governo, esperavam que já se tivesse feito a cassação dos mandatos dos deputados comunistas. Isso vem , mais uma vez, confirmar as declarações do homem de negócios americano que disse que, depois de cassados os mandatos dos representantes comunistas, tornar-se-ia fácil obter concessão do petróleo brasileiro para os trustes norte-americanos”.
Apenas em três pontos dessa longa passagem persuasiva, Mario Schenberg reúne os pólos localizados no “professor” e nos “alunos” na primeira pessoa do plural: primeiro, quando ele constata a identidade dos defensores da cassação dos mandatos dos deputados comunistas, ainda não designados nominalmente, como aqueles deputados que, no Estado Novo, foram designados de fascistas e que, naquela época, perseguiam os comunistas; segundo, quando atribui ao Governo Federal o valor negativo do sistema político brasileiro por ações já realizadas (e não apenas por ações possíveis); e , terceiro, quando corrobora uma conclamação à união dos deputados de boa vontade e encerra o discurso alertando para os inimigos supostamente comuns a todos os parlamentares.
Essa breve análise do último discurso que constrói a identidade da política do petróleo de Mario Schenberg no Parlamento Paulista mostra como ele, no contexto de persuasão, evitava uma identificação dos grupos parlamentares- e assim também uma explicitação de sua própria identidade que fosse além dos papéis preestabelecidos dos deputados.
A defesa da imagem se inicia com uma explicação do papel concreto (derivado) do povo, que, desde o primeiro discurso, havia sido introduzido enquanto representação textual do valor positivo do sistema político, junto com a apresentação do papel concreto dos inimigos do povo, cuja identidade com os inimigos dos deputados comunistas, tematizados no segundo discurso, é sugerida através da aplicação do valor negativo aos inimigos dos deputados comunistas (inimigos dos deputados comunistas= inimigos do povo). A verdadeira progresssão na identificação do povo e dos inimigos do povo, no entanto, reside no fato de que os seus papéis, deduzidos por Mario Schenberg da situação atual, agora são atribuídos a grupos concretos enquanto sujeitos de ação e, nesse momento, a interpretação das histórias desses grupos torna-se um pressuposto importante para sua identificação no presente.Paralelamente a essa preparação de uma equiparação dos inimigos do povo com o grupo parlamentar dos anticomunistas, acontece uma identificação social do povo de acordo com os padrões que caracterizam a recepção de Monteiro Lobato por Mario Schenberg (não apenas com contexto específico dos discursos).
Com isso Mario Schenberg procura, mais uma vez, fortalecer a fundamentação de seu prognóstico, segundo o qual a cassação dos mandatos dos deputados comunistas não refletiria a verdadeira opinião do povo, essa reafirmação aponta para a parte mais coerente da sua argumentação.
Retornamos, assim, ao nosso argumento inicial para torcê-lo mais uma vez. Disse que os discursos de Mario Schenberg encerram uma radicalidade que os tornaram, em sua época (como em nossos dias, talvez menos pelo aspecto político), dificilmente assimilável pela intelectualidade brasileira. Quantos de nós passaríamos pelo crivo que Mario Schenberg atravessou e por quanto tempo? Estamos diante de uma proposta de um “modo de ser” que dificilmente encontrará guarida. Mas algo já brotou e frutificou, e não há como voltar atrás: Mario Schnberg inspirou um grupo de petroleiros brasileiros, formados em uma atmosfera de autoritarismo, descobrindo e reforçando as qualidades intelectuais de quem se aproximava. É inquestionável o fato de que se o Brasil alcançou uma posição de destaque no contexto científico mundial, parte deste destaque devemos a Mario Schenberg. E se construirmos um sistema de produção de ciência e tecnologia desenvolvido, que tem prestado enormes contribuições para a sociedade brasileira, em áreas chaves, tais como a pesquisa de exploração de petróleo em águas profundas, que deve tornar o país auto-suficiente nos próximos anos, também devemos a Mario Schenberg. Daí poder sugerir que não só os discursos que apresentaram a política do petróleo de Mario Schenberg, mas todos os discursos, encerram uma radicalidade ética e germinal de uma prática de convivência marcada pela civilidade. Com o tempo, a reverência que hoje não desfruta o nome de Mario Shenberg junto do pensamento social e político brasileiro deverá dar lugar à referência a sua atuação no Parlamento Paulista como obra singela e monumental.
Ricardo José de Azevedo Marinho, professor da Escola de Ciências, Tecnologia e Arte da Universidade do Grande Rio. Diretor do Núcleo de Estudos Antonio Gramsci e assessor da presidência da Companhia Estadual de Águas e Esgotos -CEDAE……à época da escrita do artigo.
Transcrito da Publicação “Acervo Histórico -Organização do arquivo da Assembléia Provincial- edição do segundo semestre de 2005.
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