jan 30, 2017 Air Antunes Politica 0
ÁLVARO BARRETO
Este artigo aborda as normas que regeram o processo eleitoral e definiram a participação da representação das associações profissionais na Assembléia Nacional Constituinte de 1933-1934. Procura apreender o que há de específico nesta problemática e interpretar os seus significados, razão pela qual identifica e analisa o cenário em que ela se desenvolveu.
Parte-se do pressuposto de que as regras validaram determinados procedimentos e invalidaram os demais, o que afetou a dinâmica do pleito, condicionou o comportamento dos atores envolvidos e influenciou de modo decisivo o resultado final. Consequentemente, conhecer as regras é importante para que se possa apreciar com mais acuidade este processo. Ao contrário, não conhecê-las pode significar chegar as conclusões desconformes às decisões dos atores, elaborar relações falsas ou, simplesmente, tomar como inexplicáveis certos fatos.
ESTRUTURA PARA A PARTICIPAÇÃO
O primeiro texto legal a tratar do tema foi o Código Eleitoral, promulgado em 24 de fevereiro de 1932, como o Decreto 21.076, cujo artigo 142 atribuía poderes ao Governo Provisório para determinar “o modo e as condições de representação das condições profissionais”, quando da convocação da eleição para a Constituinte. Embora não trouxesse mais detalhes, a medida afirmava que essa representação participaria, de alguma forma, da elaboração da nova Constituição, ao mesmo tempo em que fazia dela mais um recurso à disposição de Vargas.
Em obediência a esse artigo, o Governo voltou ao assunto no Decreto 22.621, de 5 de abril de 1933, aquele em que elaborou o Regimento Interno e estabeleceu a composição da Constituinte, bem como assumiu o compromisso de fixar a data de convocação desta para 30 dias após a promulgação do resultado das eleições de 3 de maio de 1933, pelo Tribunal Superior de Justiça Eleitoral (TSJE). Logo, de um total de 254 cadeiras da Constituinte, 40 estavam reservadas para “sindicatos legalmente reconhecidos e pelas associações de profissões liberais e as de funcionários públicos existentes nos termos da lei civil” (art.3º).
É preciso evidenciar alguns elementos trazidos por esse decreto. O primeiro é que ao determinar a “representação das associações profissionais” como uma das bancadas da Constituinte, ele pôs fim a um acirrado debate, que se desenrolava há mais de um ano, sobre como regulamentar a medida. O artigo 1º do Decreto 22.653, de 20 de abril de 1933, o primeiro a versar especificamente sobre o tema , tratou de eliminar qualquer ambigüidade que pudesse ter permanecido, ao afirmar que “tomarão parte na Assembléia Nacional Constituinte, com os mesmos direitos e regalias que competirem aos demais de seus membros, 40 representantes de associações profissionais”.
O segundo é que havia dois tipos de “associações profissionais” para efeito de representação: os sindicatos legalmente reconhecidos, aqueles que estavam conforme ao Decreto 19.770, conhecido por “lei de sindicalização”, e que poderiam existir apenas sob a forma de organizadores de empregadores ou de empregados, e as associações registradas nos termos da lei civil, isto é, entidades de direito privado, referentes a dois grupos: as profissões liberais e os funcionários públicos.
Note-se que o Governo Provisório foi rigoroso, ao mesmo tempo em que procurou restringir as alternativas: de um lado, o Decreto 19.770 não permitia sindicatos mistos, nem de profissionais liberais e de funcionários públicos; por outro, tais categorias deveriam articular-se como associações civis, ao mesmo tempo em que estavam excluídas deste formato as entidades que patrões e de empregados, ou seja, aquelas que não queriam ser sindicatos oficiais e desejavam existir como entidades autônomas.
O Decreto 22.653 definiu a estrutura com mais precisão, ao fixar duas “classes” de igual tamanho, consagrar as quatro categorias que o Decreto 22.621 permitia interpretar e atribuir pesos diferentes a cada uma delas. Assim, a classe dos empregados teria 20 cadeiras, sendo que duas seriam das associações de funcionários públicos e as 18 restantes dos sindicatos de empregados; a dos empregadores teria as mesmas 20 cadeiras, das quais três seriam das associações de profissões liberais e 17 dos sindicatos de empregadores.
Este modelo pode ser classificado como “de classes” ou classista”, denominação muito utilizada pela historiografia. É importante frisar que a opção do Governo Provisório seguiu um critério diferente ao de todas as propostas que vinham sendo apresentadas no País, especialmente a do Clube Três de Outubro, que queria considerar as entidades a partir das profissões.
AS REGRAS DO PROCESSO ELEITORAL
Configurados a modo e as condições da representação das associações profissionais, o passo seguinte foi fixar as regras do processo eleitoral, o que ocorreu por intermédio de quatro decretos: o já citado 22.653, mais o 22.696, de 11 de maio; o 22.745, de 24 de maio, que ampliou o prazo do Ministério do Trabalho Indústria e Comércio (MTIC) para reconhecimento das entidades e, finalmente, o 22.940, de 14 de julho, que esclareceu e completou as instruções.
Os pleitos foram marcados para o Palácio Tiradentes, no Distrito Federal, a parir do meio-dia. A primeira eleição seria a dos empregados, dia 20 de julho, seguindo-se a dos empregadores, dia 25, e a dos funcionários públicos, dia 30. As vagas dos profissionais liberais seriam decididas no dia três de agosto.
Isso significa que a eleição da bancada classista ocorreria quase três meses após a definição dos 214 deputados populares, quando o Governo já conheceria a correlação de forças da Constituinte, motivo pelo qual poderia calcular com mais propriedade quais objetivos específicos ele precisaria atingir e quais fatores de risco estariam envolvidos naquela escolha.
Outro aspecto a destacar é que, se não há diferença significativa entre as representações classista e popular quanto ao poder do Governo para definir as regras da eleição, o contraste é flagrante no que diz respeito à condução do processo: a dos deputados populares foi entregue à Justiça Eleitoral e a dos classistas permaneceu sob responsabilidade do Governo Provisório, a quem coube: reconhecer as entidades e, assim, autorizá-las a participar do pleito; homologar os delegados-eleitores; preparar e realizar a votação; apurar os votos e, finalmente, promulgar os eleitos e os suplentes. Ao considerar-se que o estabelecimento de um organismo autônomo para administrar o processo eleitoral foi uma medida de saneamento, visto que reduziu a interferência do executivo e aumentou o seu custo de manutenção do controle sobre o sistema representativo, parece evidente que a permanência da eleição classista sob a jurisdição governamental , era uma medida que diminuía significativamente a independência desse pleito.
No âmbito do governo, o organismo encarregado de aplicar as normas eleitorais foi o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio MTIC), mais especificamente o ministro, especialmente quando da realização das reuniões de votação, cuja presidência deveria ser exercida por ele pessoalmente, como explicitaram os decretos.
A medida parece estranha, haja vista que era o Ministério da Justiça quem vinha tratando da Constituinte e da reorganização eleitoral do país- e a representação classista estava inserida nesse contexto. Entretanto, ela ganha justificativa, se se ponderar o caráter estratégico que esta assumiu como reforço e estímulo à política de intervenção e disciplinamento das organizações de classe. E tal política vinha sendo executada pelo MTIC.
Não por acaso, um dos pilares residia na exigência de que apenas sindicatos reconhecidos pelo MTIC poderiam participar do pleito. Logo, foi reafirmado que não havia espaço para um sindicalismo “privado” e que estavam previamente alienadas aquelas entidades que se mantivessem formalmente autônomas. Ressalva-se que a oficialização não foi criada especialmente para essa eleição, e sim incorporava uma norma oriunda de outro campo da atividade legislativa do Governo Provisório, o Decreto 19.770.
O prazo limite original para a oficialização, fixado pelo Decreto 22.653, era o dia 20 de maio. Logo, o direito de participar da eleição estava garantido para as entidades que, a essa altura, já eram reconhecidas, em contrapartida deu um período muito curto (de apenas um mês) para aquelas que ainda pretendiam buscar essa condição. Em função disso, o Decreto 22.745 estabeleceu o dia 20 de maio como a data limite para o ingresso do pedido, sendo que o reconhecimento poderia ocorrer até o dia 15 de junho. A medida deu mais tempo para que o MTIC pudesse analisar o grande número de pedidos que recebeu, sem alijar do processo as entidades que cumpriram o prazo de solicitação, mas ainda não haviam sido atendidas. Não se pode esquecer, também, que interessava ao Governo que um grande número de organizações buscasse o reconhecimento, tanto do ponto de vista do fortalecimento do sindicalismo oficial, quanto da consagração da representação classista.
Todavia, este era apenas o primeiro (e mais importante) requisito para para participar do pleito. Depois, era preciso que entidade (sindicato ou associação profissional) realizasse uma assembléia com a finalidade de indicar um dentre seus filiados para representá-la na votação. O chamado delegado-eleitor. A assembléia deveria ser realizada até 30 de maio (Decreto 22.653), prazo que depois foi estendido para 30 de junho (Decreto 22.696). Feita a convenção era preciso informar , ao MTIC, por telegrama, o nome do escolhido e, posteriormente, enviar cópia autenticada da ata.
As demais exigências para que alguém fosse homologado como eleitor eram: chegar ao Distrito Federal pelo menos oito dias antes da data da eleição de sua categoria, trazer todos os documentos que atestassem os seus poderes (prova de que exercia a profissão há pelo menos dois anos, da ata da reunião em que fora eleito, um exemplar do estatuto da entidade- todos autenticados pela diretoria). Tal não seria suficiente, se a entidade não indicasse por telegrama, no dia da eleição, o nome do seu delegado. Enfim, o MTIC teria uma série de mecanismo de controle antes de reconhecer os poderes do delegado-eleitor, o que seria formalizado pela publicação da relação de nomes no Diário Oficial.
Embora esses sejam recursos significativos para a manutenção do controle sobre o resultado do pleito, entende-se que o grande elemento a garantir a obtenção de resultados conformes ao interesse do Governo estava em outro campo, demarcado pelas circunstâncias da votação, pela forma de os eleitores manifestarem o voto e de este ser contabilizado, transformando-se nas 40 cadeiras da representação classista. Ao contrário do que se possa pensar, a opção foi fixar regras que deixaram o pleito em aberto e não trouxeram muitos constrangimentos aos eleitores. Obviamente, esta escolha não ocorreu pelo respeito à autonomia do processo, e sim porque, da forma como foram elaboradas, elas operariam a favor do Governo, ao serem colocadas em prática.
Vejam-se, inicialmente, as circunstâncias da votação. Os critérios de elegibilidade eram: ser brasileiro nato, ter mais de 25 anos, sem distinção de sexo; ser alfabetizado; estar na posse dos direitos civis e políticos, comprovar o exercício da respectiva profissão há mais de dois anos (obtida mediante atestado passado por autoridade jurídica ou policial local, dono ou diretor da empresa, repartição, oficina ou qualquer outra corporação em que ele estivesse trabalhando), comprovar filiação à categoria. Substancialmente, tornava-se inelegível quem fosse membro de uma entidade, da qual um outro filiado já tivesse sido eleito naquele pleito. Os primeiros quatro pontos, ressalvada a questão da diferença de idade, eram comuns aos deputados populares e classistas, enquanto os seguintes, específicos à condição de classista.
Contudo, em momento algum a legislação estabelecia a obrigatoriedade da inscrição de candidaturas, e sequer delimitava um universo mais restrito, ao exigir, por exemplo, que os concorrentes fossem delegados-eleitores. O princípio não era o de afirmar a condição formal de candidato, e sim o de negar esse direito àqueles que não cumprissem os requisitos de elegibilidade, reservando a todos os outros a possibilidade de postular o cargo.
Outro detalhe é que a votação ocorreria em uma única sessão, no Distrito Federal. Haveria a a passagem direta da reunião da entidade para a convenção nacional, sem quaisquer instâncias intermediárias formais, como eventos municipais, estaduais ou regionais.
Quanto à estrutura da cédula e aos procedimentos de votação, a lei definia sufrágio secreto. Não haveria o voto uninominal, e sim em lista. Logo, caberia ao eleitor preencher a cédula com os nomes que mais agradassem no limite de 27, no caso dos empregados (18 titulares e nove suplentes), e 26 no dos empregadores (17 titulares e nove suplentes), cinco dos profissionais liberais (três titulares e dois suplentes) e três no dos funcionários públicos (dois titulares e um suplente). A única obrigatoriedade seria discriminar quem eram os titulares e os suplentes, não o fazendo, seriam considerados titulares os primeiros nomes, até completar o número de vagas previstas para a categoria. Se o eleitor não preenchesse o total de nomes o que tinha direito, mesmo assim o sufrágio seria contabilizado, conforme as regras anteriores. Não era possível atribuir mais de um voto a um ou alguns nomes.
Para alguém ser eleito, precisaria figurar na condição de titular ou de suplente na maioria absoluta dos votos válidos. Se todas, algumas ou alguma das vagas não fosse preenchida na primeira votação, haveria um segundo escrutínio, no qual só poderiam ser sufragados os mais votados dentro do total que correspondesse ao dobro de lugares a preencher. Na nova votação seriam considerados eleitos os que obtivessem maioria relativa e, em caso de empate, a decisão seria por sorteio.
A ausência de candidatura formais e a condição de candidato potencial para grande número de pessoas, mais a realização de uma única sessão eleitoral, voto plurinominal e a exigência da obtenção de maioria absoluta dos votos válidos, eram peculariedades que estimulavam a competição e dificultavam as negociações prévias. Por conseqüência, elas tornavam muito difícil a eleição de qualquer pretendente , especialmente no caso dos empregados.
Algumas medidas constantes no Decreto 22.696 tentavam minimizar esta perspectiva: como se viu, os eleitores deveriam chegar ao Distrito Federal com, no mínimo, oito dias de antecedência, além disto o ministro do Trabalho, Indústria e Comércio poderia autorizar que os delegados-eleitores realizassem reunião preparatória, mediante solicitação deles, em local a ser indicado pelo ministro. Obviamente, a presença antecipada dos eleitores e a possibilidade de eles terem reunião prévia tinham por objetivo permitir a formação de acordos entre os vários pretendentes às vagas. Não surpreende, portanto, que o Decreto 22.940, o último a disciplinar o pleito , tenha explicado que a cédula poderia ser impressa, datilografada ou mimeografada, ou seja, refletir os acordos produzidos nesses encontros.
É neste contexto que o Governo provisório surge como único ator a conhecer os eleitores a ter a condição privilegiada de atuar como o principal articulador político e maestro das negociações, portanto, com capacidade para coordenador os votos, viabilizar candidaturas de interesse dele ou, no mínimo, atuar com poder de veto sobre postulantes indesejáveis ou poucos confiáveis.
Isso não significa dizer que o Governo teve a plena capacidade de impor candidatos, e sim que ele estava em vantagem nas negociações inerentes a uma decisão deste tipo. Afinal, sempre há alguma margem de risco ou incerteza em um pleito, mesmo em se tratando de um processo com as características deste, em que o Governo controlou a elaboração e a aplicação das normas. E se havia negociação, ele teria de ceder, em alguma medida. Logo, abria-se espaço (mesmo que minoritário) a candidatos dispostos a não cerrar fileira integralmente na força de sustentação de Vargas, que procurassem ter uma atuação mais independente ou reivindicar e negociar alguns pontos que não faziam parte da perspectiva do Governo ou não eram prioridade deste.
Atente-se para os fatos de que muitos eleitores podem não ter concordado com a relação de nomes definida na reunião prévia ou que o acordo não envolvia todas as vagas em disputa, sem contar a possibilidade de haver mais de uma chapa ou ausência de qualquer consenso. E esses diferentes cenários se manifestaram no pleito de cada uma das categorias. No dos funcionários públicos, as duas cadeiras foram definidas no primeiro escrutínio, sem maiores dificuldades. No dos empregadores, o mesmo ocorreu em 15 das 17 vagas, mas houve grande disputa em torno das outras duas vagas. Na votação dos empregados, foi preciso um segundo escrutínio para definir seis cadeiras, num processo complexo e que só foi concluído 20 horas após o início da sessão. Finalmente, na das profissões liberais, nenhuma das três vagas foi eleita na primeira votação.
UMA ESTRATÉGIA NO PODER
O artigo procurou identificar e analisar as normas referentes ao modo de participação da representação das associações profissionais na Constituinte e as regras que determinaram o processo de escolha desses deputados. A intenção foi a de descortinar os termos em que tal eleição se deu, com seus condicionantes, limites e peculariedades próprias..
O resultado dessa investigação indica que o Governo Provisório de Getúlio Vargas procurou manter este pleito sob controle, para isso utilizou-se dos poderes discricionários de que estava investido ao estabelecer os princípios que definiram as características do processo eleitoral, bem como ao manter em suas mãos a aplicação dessas medidas. No mesmo espírito, procurou fazer da representação classista uma medida de apoio e reforço à política sindical que ele vinha implementando.
Entretanto, a estratégia do Governo não foi a de atingir os objetivos pretendidos por meio de normas viciadas e casuísticas, as quais inevitavelmente deveriam produzir aquele resultado, e sim a de adotar regras que deixaram o pleito em aberto, o que redundaria em sucesso sem a necessidade de corrompê-lo. Assim, o voto em lista, a ausência de candidatos formais, a realização de uma única sessão de votação, na capital federal, e o estabelecimento de um patamar muito exigente de votos para garantir a eleição eram medidas que dificultavam a articulação e a viabilização de candidaturas e que, na prática, destacaram a condição de principal articulador político do Governo, o qual pôde comandar as reuniões de negociações. Do Acervo Histórico da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo.
Álvaro Barreto, professor do Instituto de Sociologia e Política- ISP da Universidade Federal de Pelotas, doutor em História pela Pontífica Universidade Católica do Rio Grande do Sul
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