abr 10, 2017 Air Antunes Politica 0
MARIA CONCEIÇÃO SANTOS
Percorrer os diversos caminhos que levam à construção de uma história é uma tarefa árdua e, ao mesmo tempo, fascinante, pela possibilidade de trazer à tona as vozes de sujeitos que, por muito tempo, permanecem silenciados nas páginas dos documentos. Cabe aos pesquisadores dar-lhes voz, criando, assim, uma possibilidade de resgatar o passado. Neste sentido, fazer um percurso pelas páginas dos Anais do Legislativo Paulista constitui-se numa tarefa de tirar do silêncio involuntário sujeitos que, em seus debates, construíram parte da história política brasileira, refletindo as questões postas para a sociedade de uma determinada época. Ao analisar a trajetória política de parlamentares como Cândido Nanziazeno Nogueira da Motta, pode-se trazer a lume o percurso de sua formação, as relações estabelecidas no espaço social que contribuíram para construir as bases de formulação das políticas públicas , em especial para a infância, visto que as ações e posicionamentos políticos de um sujeito não estão desvinculados da estrutura social à qual pertence.
Em sua trajetória, Cândido Motta transitou entre os campos jurídico e político. Esse percurso refletiu-se nos debates estabelecidos com outros parlamentares sobre a criminalidade de menores, impelindo a inserção do Estado na questão, colocando crianças sob sua tutela por meio da criação de instituições- em regime de internato- a fim de educá-las e corrigi-las pelo trabalho, para devolvê-las à sociedade como cidadãos-trabalhadores, servidores da pátria.
A CRIANÇA ENTRE DOIS PÓLOS: O PÚBLICO E O PRIVADO
A República anunciara a idéia de progresso, mas esse ficara apenas na promessa, pois não trouxe melhorias nas condições de vida de grande parte da população. Assim, o Brasil entrava no século XX assistindo a um agravamento dos problemas sociais que ultrapassavam a capacidade de atendimento das instituições filantrópicas, tanto religiosas como de particulares.
Se a prosperidade do país, dizia-se, viria como resultado do trabalho- compreendido como chave para a supremacia de um povo-, o operário tornava-se, dessa maneira, um personagem que propiciaria a entrada na “vanguarda da civilização” rumo à “supremacia dos povos superiores”.
Ângela de Castro Gomes observa que o Estado moderno precisava humanizar-se. “O trabalho deveria ser encarado como uma atividade central na vida do homem e não como meio de “ganhar a vida”. Isto implicava que o homem assumisse plenamente sua personalidade de trabalhador, pois ela era central para a sua realização como pessoa e sua relação com o Estado”.
Sonia Regina Mendonça que na sociedade brasileira do século XIX, “recém-egressa da escravidão (…) e por isso herdeira de práticas repressivas de coerção do trabalho”, o Estado precisou redefinir as “modalidades de compulsão ao trabalho para além da coerção explícita”. Para conformar o homem a uma nova modalidade era preciso moldar, preparar, educar, enfim, produzir um novo tipo de trabalhador. Neste contexto de produção de um trabalhador livre, a infância abandonada emergiu como problema para a sociedade e foi situada na fronteira entre a esfera pública e a privada. As condições que se apresentavam proporcionaram uma nova cultura- que se pode observar nas discussões travadas no cenário político-, que levou à reivindicação de intervenção do Estado nessa questão.
O desenvolvimento do capitalismo, na mesma proporção que valorizou o trabalho, trouxe a condenação do ócio. A ociosidade passou a ser classificada como sinônimo de vagabundagem. O oposto do vagabundo seria o trabalhador. Para as classes privilegiadas o ócio era perfeitamente aceitável, visto que consideravam ter recursos para viver dessa maneira. Dessa forma delineou-se uma nova modalidade de atendimento aos pobres.
No cerne da preocupação com a formação e disciplinamento das classes trabalhadoras, no fim do século XX, tanto na Inglaterra como em outros países da Europa, discutia-se qual seria o melhor sistema de atendimento aos menores delinqüentes. Nos diversos congressos, debatia-se sobre o aperfeiçoamento do regime penitenciário, colocando-se em pauta a criação de asilos para menores abandonados e formulando quesitos sobre o sistema de maior eficácia para a regeneração moral dos delinqüentes de menor idade. Como resposta, estabeleceu-se que, na falta de famílias que dessem garantias de uma boa educação e que estivessem dispostas a assumir esse encargo, poder-se-ia recorrer a estabelecimentos públicos ou particulares convenientemente organizados. Estes estabelecimentos deveriam ter por base a religião e o trabalho, associados ao ensino escolar.
No Brasil, país agrário, até o final do século XIX predominou a ação filantrópica do tipo caritativa no atendimento à criança que, aos poucos, se transformou na denominada nova filantropia”, refletindo a mudança tanto da economia, como pensamento sobre as funções do Estado em relação às questões públicas. A atuação do poder público ante a questão deu-se por muito tempo na condição de colaborador, isentando-se dessa maneira, do papel de responsável. O Senado Estadual e a Câmara dos Deputados recebiam, com freqüência, pedidos de isenção de impostos e de subvenções por parte de instituições particulares. No final do século XIX, observam-se diversos pedidos encaminhados por parlamentares- especialmente os que tinham origem no município onde se localizava a instituição que se pretendia beneficiar-, que os apresentavam como de grande valor para a sociedade. Estes pedidos eram resultado de um olhar de preocupação, especialmente direcionado para a infância pobre, considerada potencialmente perigosa. Assim, apontava-se a necessidade de instituições educativas de caráter preventivo.
Em São Paulo, além dos institutos profissionais do período imperial, em 1894, o projeto apresentado no Senado por Paulo Egydio, propondo a criação do Asilo Industrial destinado a esse fim, refletiu tal preocupação.
Um outro indicativo da inserção do poder público nesse campo foi a emenda apresentada por Alfredo Pujol, para a Lei nº 513, d3 1897, que visava alterar a forma de subvenção aos estabelecimentos de ensino ou de caridade em São Paulo. Ele propunha que essa disposição estivesse explícita e que as subvenções fossem pagas em prestações mensais, correspondentes a um aluno para cada conto de réis de subvenção, ou seja, para receber esses auxílios as instituições deveriam se comprometer a receber órfãos e desvalidos. A referida lei apresentava-se como uma garantia de atendimento a qualquer criança que fosse encaminhada pelos poderes públicos, visto que as instituições, não raras vezes, recusavam-se a atender aquelas que consideravam demasiadamente viciadas.
A infância tornou-se , assim, uma questão de Estado, sobretudo pela institucionalização do caráter repressivo, pelo qual se procurou disciplinar para o trabalho e prevenir um suposto aumento da criminalidade. Um exemplo disso pode ser verificado na discussão em torno da criação do Instituto Educativo Paulista, no Congresso Legislativo do Estado de São Paulo.
O autor do projeto, o jurista e parlamentar Cândido Motta, apontava o crescimento populacional, que girava em torno de 300 mil habitantes, como uma das justificativas para a sua aprovação. O projeto caracterizava-se como um desenvolvimento de “medidas profiláticas capazes de evitar e prevenir a eroção da criminalidade na infância desprotegia”. Era em nome da ordem social qu se reivindicava a inserção do Estado, visto que a funão de punir era considerada inerente a ele. Embora a prevenção fosse considerada de ordem privada, de beneficência, ao Estado caberia a função de prover o bem-estar geral formando bons cidadãos.
Nos países onde a filantropia se encontrava mais desenvolvida, o Estado intervinha de maneira mais sutil, afirmava Cândido Motta, MS no caso brasileiro não se dispunha nem instituições particulares suficientes, nem de instituições públicas. Além disso, outra razão para justificar a intervenção do Estado era de ordem econômica: ara mais vantajoso prevenir do que reprimir.
Cândido Motta, ao apresentar o projeto de instituição para crianças pobres, revelou uma nova percepção desse segmento, delineando novos papéis para o Estado, visto que a criança abandonada era situada entre duas possibilidades: o futuro trabalhador ou o futuro delinqüente. Cabia ao Estado a tarefa de evitar o surgimento de novos delinqüentes, preparando futuros trabalhadores em defesa da sociedade.,
Os pobres , considerados potencialmente perigosos, deveriam ser controlados, bem como sua prole. A infância pobre deveria ser conduzida desde cedo para o mundo do trabalho, em instituições capazes de moldar comportamentos, a fim de constituir o futuro cidadão trabalhador, amante da ordem. A pobreza , apontada como matriz do abandono, serviu como justificativa para a criação de instituições cujo objetivo era a regeneração de crianças pobres através do trabalho. Nesse contexto, surgiu o Instituto Disciplinar.
INSTITUTO DISCIPLINAR- O Projeto de Lei nº 16, de 1900, para a criação do Instituto Disciplinar, somente foi aprovado dois anos depois e transformou-se na Lei nº 844, de 10 de outubro de 1902. No projeto, Cândido Motta previa a criação de um instituto correcional, industrial e agrícola, inicialmente denominado Instituto Educativo Paulista, para o atendimento de menores moralmente abandonados e criminosos. Antes de ser encaminhado à Câmara dos Deputados, o mesmo foi objeto de análise de um professor de direito criminal da Universidade de Paris, Alfred Lepoitvin, fato que aponta o diálogo com outros criminalistas na elaboração da referida instituição.
No discurso de apresentação do projeto, na Câmara dos Deputados de São Paulo, é possível delinear os princípios que permearam sua elaboração. Nele, o parlamentar discorreu sobre os objetivos e a importância da criação de uma instituição de caráter preventivo da criminalidade infantil e juvenil. Por ser de prevenção, com vistas à defesa da própria sociedade, o instituto era apresentado como de grande alcance social, embora houvesse uma discussão cobre a competência ou não do Estado em fundar instituições de caráter preventivo, visto que a função de prevenir o crime e isso se reverteria em benefício da sociedade, era o nome do bem geral, “de prover o bem-estar social que se reivindicava a ação do Estado. Os poderes públicos competentes deveriam voltar sua atenção paras aqueles que consideravam os futuros servidores da pátria.
Cândido Mota abordava o problema da infância como algo que se impunha aos filantropos e homens de Estado, conforme ocorria na França. Essa filantropia à qual se refere é a que se denominou, aqui, de nova filantropia. Ou seja, aos particulares cabia a responsabilidade de promover, em parceria com o Estado, ações que visassem ao bem comum.
Assim, havia a necessidade, em São Paulo, de um asilo em que os menores recebessem uma educação moral e cívica rigorosa e pudessem formar o caráter pelo estímulo e pelo exemplo. No ano de 1895, apoiado pelo deputado Costa Carvalho, Cândido Motta dirigiu-se ao procurador-geral do Estado, ressaltando o aumento da criminalidade infantil. Este chamava a atenção para a inação dos poderes competentes, no caso o Legislativo, no sentido de organizar o sistema penitenciário.
Para Cândido Motta, a organização da instituição penitenciária seria uma forma de contribuição para o progresso do Estado, assim como a instituição para menores. Segundo ele, o pensamento geral, dominante entre aqueles que se interessavam pela proteção da infância criminosa e abandonada, revelado nos diversos congressos em que havia participado, era o de que o instituto correcional não deveria ter um caráter punitivo, como aqueles destinados aos adultos, mas principalmente educativo.
Apesar de aprovado na Comissão de Justiça e encaminhado à Câmara dos Deputados e depois ao Senado, este emitiu parecer somente em 1902, apresentando um substitutivo para o projeto original. Em 1901, na proposição de emendas, o Senado tratava da criação de uma Escola Disciplinar e de uma Escola Correcional. No mesmo ano, em segunda discussão, a denominação utilizada era Instituto Correcional, Industrial e Agrícola, mas somente pela Lei nº 844 o Estado foi autorizado a fundar o estabelecimento, porém com a denominação de Instituto Disciplinar. A mudança de nome refletiu a tentativa de adaptação ao que determinava o Código Penal, visto que ao Estado cabia a repressão à criminalidade, portanto este não poderia criar uma instituição apenas de caráter educativo. Para isso, dizia-se , existiam as escolas.
O deputado Amador Cobra, ao comentar o projeto de Cândido Motta, considerava a criação de “asilos correcionais” como sinônimo de adiantamento, de progresso. Citava a Rússia como exemplo desse adiantamento, com a fundação do “asilo correcional de Moscou”, em 1865. Em diversos congressos realizados na Europa, na segunda metade do século XIX, discutiam-se os princípios de organização das instituições destinadas à correção de menores abandonados. Em Roma, fundara-se o primeiro asilo correcional denominado São Miguel. A cela para isolamento e oração tornou-se cela penitenciária, lugar onde deveriam pagar pelos crimes cometidos. A solidão da cela era considerada “um enorme benefício para a alma”, constituindo-se coadjuvante na regeneração do delinqüente.
O projeto de Cândido Motta encontrou semelhança no projeto de 1893, do senador Paulo Egydio, para a criação do Asilo Industrial de São Paulo, o qual ficou engavetado no Senado Paulista. Isso talvez explique o fato de Paulo Egydio ter sido um dos senadores que mais apresentaram emendas ao projeto, pois viu no Instituto Educativo de Cândido Motta a concretização de sua proposta de instituição, embora com algumas modificações. Na essência, os dois projetos se assemelhavam , mas o projeto de Cândido Motta distinguia-se, especialmente, por apresentar uma estrutura organizativa tríplice. Era ao mesmo tempo escola de correção, escola de trabalho e asilo para abandonados moralmente. Se na Inglaterra essas instituições eram distintas, embora com o mesmo fim, em São Paulo procurou-se otimizar a institucionalização por meio dessa tríplice estrutura
Ao apresentar o artigo 2º, que tratava da lotação o Instituto, Cândido Motta argumentava que, embora tivesse se inspirado principalmente no reformatório de Elmira, que atendia a mais de mil internos, a limitação estipulada em duzentos menores justificava-se pelo fato de facilitar a vigilância, a observação. Outra preocupação latente relacionava-se à aparência do edifício, que deveria ser construído de forma tal que não se assemelhasse às cadeias públicas ou outras prisões do Estado, embora a disciplina e a ordem pressupostas fossem semelhantes. Nessa preocupação identifica-se a necessidade de fazer ver e crer que a instituição não era uma espécie de prisão. No entanto, previa-se no projeto a unidade celular para isolamento.
A partir da noção de defesa social, procurou contemplar, no artigo 4º, a população atendida pelo instituto que tratava, especialmente, daqueles considerados moralmente abandonados, em virtude de serem considerados portadores de caracteres herdados. Dessa forma, incluíam-se entre eles os filhos de condenados que não tivessem recursos necessários para sua educação moral, intelectual e profissional; os vagabundos, os quais eram considerados os menores abandonados, cujos pais haviam se descuidado de sua educação, e estavam entregues às vicissitudes da sorte; os maiores de nove anos e menores de quatorze que agissem sem discernimento.
Para o primeiro grupo, o recolhimento no instituto de acordo com o inciso I do artigo 4º, dar-se-ia somente em virtude da falta de recursos para se prover o sustento dessas crianças e mediante a requisição dos pais ou tutores. Esse aspecto foi duramente criticado , tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. Na Câmara dos Deputados, Amador Cobra foi o principal opositor ao inciso I do artigo 4º. Para ele, o recolhimento de menores moralmente abandonados feria o Código Penal, na medida em que punia com a privação de liberdade alguém que, antes de tudo, era vítima e cujo único crime era estar em situação de abandono.
Cândido Motta, por sua vez, apelava para os princípios da “ciência moderna”, segundo a qual era inegável que o crime do pai era resultado dos defeitos de sua organização física ou psicológica, defeitos esses que se refletiam poderosamente na moral, de modo que o filho apresentava grade probabilidade de cair no mesmo mal por transmissão hereditária. Daí a necessidade de a sociedade vigiá-lo mais de perto e de empenhar-se em afastá-lo do crime, por meio de uma rígida educação moral nos institutos destinados à educação e à recuperação. A educação moral deveria compreender, além dos ensinamentos religiosos , o exemplo pela punição e pela premiação. A primeira deveria ser temida; a segunda, desejada. Ambas faziam parte de uma mesma estratégia: incutir no interno o desejo de se tornar melhor.
O inciso II do artigo 4º tratava de definir quem eram os vagabundos. A vagabundagem era considerada um estágio inicial para a criminalidade. Para os jovens maiores de 14 anos, classificados na categoria de vadio ou vagabundo, a medida seria o recolhimento em institutos disciplinares, onde poderiam permanecer até a idade de 21 anos.
Numa outra categoria, de moralmente abandonados, incluíam-se os maiores de nove anos e menores de quatorze que agissem sem discernimento. Essa era uma questão polêmica, pois se agia sem discernimento, o menor não poderia ser considerado criminoso. Em contrapartida, não se sabia que destino dar a esse grupo. Cândido Motta alegava que se a lei o absolvia, não se poderia, por outro lado, impedir que a sociedade zelasse pela sua educação, no caso de pais incapazes. Nesse caso, a internação não se constituía uma pena, mas uma medida de educação, portanto, os menores deveriam entrar no instituto pela segunda porta, ou segunda classe, que era a de observação, a fim de se avaliar sua capacidade de discernimento, visto que havia uma lacuna no Código Penal nesse sentido.
Quanto aos menores condenados por sentença judicial, que houvessem agido com discernimento, deveriam entrar pela primeira classe, que era a de correção e de isolamento durante o dia e a noite. Após um estágio mínimo de um ano e de uma avaliação de comportamentos, o interno poderia ser promovido para a segunda classe e, assim, sucessivamente, até a terceira, que era a porta de saída.
A divisão em classes, no Instituto Disciplinar, tinha o objetivo de formar grupos à parte, que não se poderiam se juntar. Esta era uma medida preventiva para que um grupo não continuasse o outro. Assim, processava-se a classificação e separação dos corpos doentes, para não contaminar os corpos sadios. A primeira classe era de isolamento, a segunda de observação e a terceira constituía-se no último estágio de permanência na instituição. Essa divisão obedecia à seguinte lógica: classe dos maus, dos duvidosos e dos bons.
Nos artigos 27 a 29 encontravam-se as disposições referentes à prisão, condução dos menores às delegacias de polícia e ao Instituto. A fotografia, prevista no artigo 8º, quando da entrada na instituição, foi duramente criticada por Amador Cobra, que a considerava vexatória. Mas para Cândido Motta, adepto das teorias lombrosianas, a fotografia constituiria um instrumento para o estabelecimento de uma tipologia do interno a partir de estudos antropológicos e par a administração do Instituto. Ao final, apesar de todas as críticas apresentadas, Amador Cobra se disse favorável ao projeto. O médico deputado Esteves da Silva destacava que este vinha satisfazer uma necessidade imediata da sociedade paulista.
Cândido Motta concluiu alegando que procurou adequar o projeto à opinião dominante sobre o assunto, naquele momento, destacando sua utilidade incontestável, com base na noção de defesa social. O combate à criminalidade apresentava-se como um caminho para o aperfeiçoamento moral.
O trabalho deu o tom do modelo implantado na instituição. Dessa forma, privilegiou-se o ensino profissionalizante e, nele, o ensino agrícola. A maior parte do tempo deveria ser destinada aos trabalhos agrários, pois estes eram considerados os mais próprios para o desenvolvimento do corpo, na medida em que o habituava ao “labor rude e pesado, às intempéries das estações”. O contato com a natureza deveria promover o equilíbrio do cérebro e da alma, além da reflexão sobre as conseqüências dos atos praticados. O trabalho apresentava-se como o remédio para o equilíbrio físico e mental, essencial à regeneração. Era preciso ocupar a mente com o trabalho para que essas divagações não ocorressem.
Mais do que fornecer trabalhadores para a agricultura, procurava-se limpar o espaço urbano de presenças indesejáveis. Em um discurso na Câmara dos Deputados, um parlamentar argumentava que se as vagas dos internos não se destinavam às classes privilegiadas, que fossem , portanto encaminhadas para o trabalho na terra.
A partir do artigo 13 encontram-se as normas disciplinares, estabelecidas em todas as relações e atividades pautadas pelo constante vigiar, função exercida também pelos internos, induzida por premiações, como posições privilegiadas, que lhes davam a incumbência de transmitir ordens ou instruções de autoridades superiores e de levar ao conhecimento destas as faltas cometidas pelos colegas. Aqueles que, ao final de um ano, tivessem um bom comportamento eram incumbidos de “vigiar a conduta de seus companheiros, transmitir-lhes as ordens ou instruções da autoridade superior, e de levar ao conhecimento desta as faltas cometidas, para a necessária repressão”.
Esse processo disciplinador remete à Michel Foucault, que, em Vigiar e Punir, afirma que a privatização da liberdade é um dos principais elementos da nova forma de punir,que se consolida a partir do desenvolvimento industrial. Na correção pelo trabalho, o corpo não é mais o alvo principal, como na época dos suplícios, mas um instrumento ou intermediário. Ainda, segundo Foucault, “o castigo passou de arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos, ou seja, o castigo deveria ferir mais a alma do que o corpo e incutir no criminoso o desejo de cumprir a lei. Assim, a disciplina era fundamental, na medida em que se constituía em instrumento de adestramento eficaz.
As recompensas ou prêmios pelo comportamento desejado também se inscreviam na lógica da ação curativa. O artigo 26 do regulamento trata desse aspecto. Nele estão definidas as recompensas autorizadas. Esse modelo de premiação procurava romper os laços de solidariedade entre os internos, na medida em que estabelecia a competição e a permanente vigilância entre eles. A premiação que se atribuía a diversos comportamentos desejáve3is fazia parte da lógica disciplinar de adestramento e normatização. A não-punição, mas a idéia de educação era pressuposto dos congressos internacionais em fins do século XIX.
O Projeto de Lei nº 16, de 1900, para além de sua eficiência ou não, chamou para o Estado a responsabilidade de uma ação preventiva e repressiva da criminalidade infantil em São Paulo e assinalou uma nova forma de atendimento a esse segmento, sobretudo, a inserção do poder público nesta questão social. Essa nova forma de atendimento reproduziu-se na criação posterior de outras unidades de atendimento, como em 1909, quando foram fundados mais três Institutos Disciplinares no Estado de São Paulo.
A obra de Cândido Motta
A obra de Cândido Motta constitui referência para o estudo da infância no Estado de São Paulo, tanto em abordagens voltadas para o aspecto jurídico como institucional. Como idealizador do projeto de institucionalização para menores, originalmente denominado Instituto Educativo Paulista, suas idéias encontraram aceitação, à época de sua produção, tanto no plano interno como no externo, pelo reconhecimento de teóricos nos quais ele se inspirou. Como num jogo de espelhos, eles se leram e se reconheceram um na obra do outro. Cândido Motta foi um dos principais representantes da Nova Escola Penal em São Paulo, responsável por divulgar as idéias dessa escola na Faculdade de Direito de São Paulo, não obstante outros juristas que a ela se filiaram, total ou parcialmente, um adepto e defensor das teorias de Lombroso e de outros fundadores da Nova Escola Penal e delas se utilizou para formular seu projeto de atendimento aos menores delinqüentes.
Na base da preocupação com o trabalho e a criminalidade infantil, diversos juristas atuando no campo político elaboraram propostas consoantes aos interesses da sociedade, em especial das camadas médias urbanas e da elite econômica. Com relação à infância observou-se atenção especial à questão da inimputabilidade e à formulação de leis específicas para tratar os menores, além da criação de instituições preventivas e corretivas da criminalidade infantil por meio do trabalho.
Os Anais do Poder Legislativo de São Paulo e o conjunto da obra de Cândido Motta constituem-se importante referência para o estudo da infância no fim do século XIX e início do século XX, tanto em abordagens voltadas à análise da legislação como do discurso jurídico sobre a menoridade. A compreensão da passagem da noção de criança para a de menoridade- e dessa como questão do Estado nesse período- deve incluir a leitura dessas fontes. Outro aspecto que deve ser analisado a partir da leitura desses documentos é a organização do Sistema Penitenciário em São Paulo, bem como da Polícia de Costumes, alvo de debates. A criação de instituições desse porte representou o delinear de uma política moralizadora, associada ao crescimento urbano, à formação de um mercado livre de trabalho e, sobretudo, à preocupação com moldar a população pobre, as classes trabalhadoras, aos novos modelos político e econômico.
A obra Menores delinquentes e seu tratamento no Estado de São Paulo, uma das mais conhecidas e importantes desse jurista, serviu de base para oito dos pressupostos conclusivos do 4º Congresso Científico, 1º Pan-Americano, realizado em 1909 no Chile, no qual Cândido Motta, como representante do Brasil, atuou como assistente. Dentre os pressupostos conclusivos desse congresso podem ser destacados: o reconhecimento da necessidade de intervenção direta do Estado no trabalho preventivo de assistência à infância; a necessidade de subvenção às entidades particulares de assistência à infância; a determinação de atenção às denominações e características dos espaços destinados ao internamento de crianças e adolescentes; o aconselhamento às instituições para que não excedessem o limite dos duzentos internos; a proposta de criação de instituições com tríplice função- prevenção, recuperação e educação; a recomendação de especial atenção aos filhos de condenados e o respectivo internamento com representação dos tutores; a condenação dos castigos corporais e a proposta de se aplicar, para os mais indisciplinados, o regime celular como castigo e a recomendação de que a direção das instituições fosse entregue a homens da ciência, sem apadrinhamento.
Todos esses itens apresentam aspectos encontrados no projeto de instituição de Cândido Motta. Afora os exageros, a proposta era ambiciosa para a época, Se, de um lado, respondia às expectativas de parcela da sociedade, de outro, colocava-se num plano ideal por seu autor, que pretendia dar uma formação mais esmerada para os internos, a qual deveria incluir noções de direito constitucional, vislumbrando a formação de alguns deles em bacharéis. O conhecimento sobre economia política e direito constitucional era uma forma de evitar que um indivíduo “caísse com o cérebro desprevenido” nas teorias que geravam o anarquismo e outras coisas semelhantes.
A instituição foi criada em meio a uma discussão sobre a criação de uma legislação específica para os menores e, por anteceder a ela, pode-se inferir que, neste aspecto, também teve repercussão, visto que, até o Código de Menores de 1927, para definir quem deveria ser interno no Instituto recorria-se ao que dispunha o Código Penal.
No Estado de São Paulo, o projeto desse jurista assinalou a entrada efetiva do Estado na questão da infância apontada como abandonada, viciosa, delinqüente. Em síntese, seu trabalho configurou-se como um projeto político a partir do estabelecimento de um modelo de atendimento para a infância e adolescência pobres. Cândido Motta, com outros juristas e parlamentares, construiu em seu discurso os pilares de uma nova política e da elaboração de uma legislação para a infância, que concretizou com o Código de 1927 e procurou consolidar uma “visão hegemônica” sobre a criança.
Domingos Corrêa de Morais, vice-presidente do Estado de São Paulo, num discurso na Câmara dos Deputados, em julho de 1903, destacou a importância da criação do Instituto Disciplinar e da Colônia Correcional para a ordem pública e justificou o fato dela ainda encontrar-se no papel em virtude da crise econômica do Estado. Outro aspecto a ser destacado é a introdução da escola no cárcere, como já preconizavam alguns autores, como Rômulo Pero, em artigos publicados na Revista de Ensino. Se o projeto original do Instituto Disciplinar pressupunha a escola na instituição, isso serviu de inspiração para que se introduzisse a escolarização no sistema penitenciário, em discussão à época da criação do referido instituto.
No que se refere à discussão sobre a infância, também podem ser citados nomes como Tobias Barreto, Lopes Trovão, Amador Cobra, Alcindo Guanabara, Paulo Egydio, Moncorvo Filho. Sobretudo nos discursos de Lopes Trovão, Cândido Motta encontrou convergência de idéias no que se referia à criação de leis específicas para a infância.
Cândido Motta, om seu projeto, procurou responder aos anseios de diferentes setores sociais em relação à infância categorizada como menor, mas também assinalou a necessidade de “um novo ideal de proteção e assistência à infância”. Mais do que isso, suas idéias contribuíram para colocar a infância no foco político, em meio a uma preocupação de formação da nação brasileira, visto que aquela passou a ser encarada como seu futuro, promissor ou não, dependendo do investimento que se fizesse nos pequeninos futuros cidadãos.
Como republicano, acreditava que era tarefa dos legisladores aparelhar o Estado com instituições que possibilitassem a prevenção do delito. Embora não tenha sido pioneiro nessa discussão, encontrou apoio entre diferentes grupos. Um exemplo disso foi a aquisição do terreno para a instalação do Instituto Disciplinar ter sido efetuada pelo chefe de polícia, antes mesmo da aprovação do projeto. O Instituto Educativo Paulista (aprovado como Instituto Disciplinar), dizia Motta, faria a glória de São Paulo, assim como a Escola de Metray havia feito a glória da França. Sua obra significou, no Estado de São Paulo, uma elaboração teórica e prática sobre o atendimento aos menores. Embora não se tenham dado condições à aplicação da totalidade de sua proposta pelas limitações do espaço físico, entre outras, o projeto institucional fincou as bases do que mais tarde se reproduziria como forma de atendimento à menoridade, consolidando, ao longo dos anos, uma prática excludente de “reclusão de crianças e adolescentes sem direito à defesa”
A análise do projeto institucional desse parlamentar, especialmente no que se refere à premiação e punição, encontra equivalente, num período nas FEBEM´s. A metodologia edificada nessas unidades tem muito dos pressupostos aplicados no primeito Instituto Disciplinar. Embora aporte como um de seus objetivos “promover o educando nas suas qualidades e potencialidades e colocar limites onde o mesmo necessita para a convivência social, familiar e comunitária”, observa-se que a socialização passa pela exclusão, ou seja, isola-se para socializar, numa prática contraditória.
Ao estabelecer um contraponto com o Instituto Disciplinar de Cândido Motta e a atual FEBEM, percebe-se o quanto ainda permanece da instituição original que, para a época, representou um avanço no atendimento à infância e adolescência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Juristas e parlamentares , ao proporem um tratamento preventivo e corretivo para a infância, elaboraram um processo de criminalização desse segmento, em que a prevenção e a correção eram adotadas, sobretudo, como processo educativo e disciplinador de mão-de-obra para o mercado de trabalho. A elaboração de propostas que visavam a criação de instituições para menores contemplou esse aspecto, retirando da família o direito de punir, transferindo-o ao Estado. A criança considerada potencial força de trabalho deveria ser educada, preparada no seio da família e da escola, ou nas instituições de correção para aquelas que viviam nas ruas.
Isto se deu como resultado de uma nova maneira de conceber a inserção da criança na sociedade, de um “novo jogo de forças” que se estabeleceu pelas transformações econômico-sociais. Neste contexto, ao ser tratada como um potencial trabalhador, que deveria ser educado, disciplinado para o trabalho, procurava-se constituir um cidadão republicano, ou seja, um cidadão-trabalhador.
Apesar de um século de criação da instituição original, métodos ineficazes ainda persistem e os problemas permanecem como a apontar à sociedade sua incompetência em lidar com os delinqüentes que produz. Um projeto de reestruturação, baseado no treinamento e capacitação constantes, pode ser o caminho de mudança almejada do foco de trabalho de instituições que cuidam de crianças e adolescentes, do punitivo para o exercício da cidadania. A preocupação com a profissionalização de jovens e adolescentes também segue a linha das primeiras instituições, ou seja, oferecem-se cursos que não consideram o interesse ou a demanda do grupo, para que a formação realmente possibilite o rompimento do ciclo de exclusão vivido por eles e seus familiares. Por outro lado, é preciso considerar também os adolescentes e jovens que chegam ás unidades das FEBEMS em virtude do envolvimento com drogas e, posteriormente, da prática de atos infracionais, o que exige outra forma de trabalho.
Apesar de a Declaração Internacional dos Direitos da Criança, promulgada pela ONU em 1989, ter sido praticamente absorvida pela lei, no Brasil ainda há grandes desafios a serem enfrentados, dentre eles a ruptura com uma mentalidade calcada na exclusão. Embora o Direito do Menor tenha antecedido o Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação para a infância e adolescência edificou-se sob a égide da distinção, categorização e exclusão, consolidando um tratamento desigual às crianças, de acordo com sua classe social. Dessa forma, utilizando as palavras de Irma Rizzini, é possível afirmar que a institucionalização da infância teve um “sentido político-ideológico”, pois mais do que trabalhadores qualificados, o que se pretendia era obter trabalhadores dóceis e disciplinados.
Maria Conceição Santos,
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