Pego um texto “corrigido”. A pessoa escreveu “tinha feito”. A que “corrigiu” riscou o “tinha” e anotou ao lado: “havia”. Pronto! Era só o que (não) me faltava: alguém considerar “errado” um uso que se faz há quatrocentos anos, presente na obra dos mais aclamados escritores da língua! Leio o resto do texto “corrigido”: mil erros de pontuação, inadequação vocabular, sintaxe capenga…
Mas nada disso chamou a atenção de quem “corrigiu”. Taí o resultado da calamitosa formação (formação?) docente oferecida nesse país infeliz e trágico. Uma educação pública das piores do mundo, e uma educação linguística que não é educação nem linguística!
Desprovida de mínimas habilidades de leitura e escrita, muita gente se agarra a meia dúzia de falsas “sofisticações”, que pipocam quinze vezes por página em textos claudicantes e incoerentes. Inventaram que é pra evitar o uso de “mas”, então toca a escrever “porém” a cada linha. Disseram pra não usar “num”, “numa”, mas “em um”, “em uma”, desfazendo uma contração absolutamente legítima do português há mil anos. O verbo “ter”, dos mais empregados da língua, é categoricamente banido, substituído pelo insuportável “possuir”, que substitui não só “ter”, mas qualquer outro verbo (“Fulano possui doutorado…”, argh!). nada nem ninguém “está”, mas “encontra-se”. “Ele” e “ela” são muito chinfrins, o chique é dizer “o mesmo”, “a mesma” (“antes de entrar no elevador verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar”, pérola imbatível de texto “sofisticado”, pois não?). As coisas deixaram de ser “diferentes” para se tornar diferenciadas”. E, claro, o auxiliar “tinha” vai pro lixo, o bonito é escrever “havia feito”. Por que não escrever também “hei feito”, pra deixar tudo ainda mais lindo?
Numa cultura letrada indigente como a brasileira, a insegurança linguística provoca esses fenômenos, classificados de “hipercorreção” . Acredita-se que escrever é sempre escrever “difícil”, que é preciso evitar “interferências da fala na escrita”, ó sacrossanta bobagem! Assim, tudo o que é habitual, normal e espontâneo na fala tem que ser expulso da escrita. E o resultado é o que vemos a todo momento: textos sem pé nem cabeça, mas cheios de “em um”, “o mesmo”, “possuir” e, claro, entupidos de “havia feito”, “havia sido” etc. Situação que só tende a piorar com essa corja de criminosos que assaltou o poder e se empenha a destruir o já combalido sistema educacional público. (Da revista Caros Amigos).
Marcos Bagno é linguista, escritor e professor da UNB.