nov 17, 2017 Air Antunes Artigos 0
PAULO TEIXEIRA E GUILHERME MELLO
Características gerais da previdência pública no Brasil
A previdência social é um dos pilares fundamentais do chamado “Estado de Bem Estar Social”, política de garantia de direitos sociais e serviços públicos que avançou nos países desenvolvidos ao longo do século XX, melhorando a distribuição de renda e criando uma rede de proteção contra a pobreza e o desemprego. No Brasil, a preocupação em construir um “seguro social” amplo, que proteja o cidadão ao longo de sua vida e na sua velhice, é uma característica central da Constituição Federal de 1988 (CF88), a chamada “Constituição Cidadã”. Apesar de já existir anteriormente uma previdência pública, administrada pelo extinto INPS, foi com a Constituição de 88 e a instauração de um regime de seguridade social ampliado que o Brasil avançou na constituição de um Estado de Bem Estar social como projeto nacional.
O atual sistema previdenciário brasileiro, regulado pela CF88, é uma das três políticas públicas centrais do chamado “orçamento da seguridade social”, que engloba não apenas a previdência, mas também a assistência social e a saúde. A previdência social, por sua vez, é composta pelo chamado Regime Geral de Previdência Social (RGPS, operado pelo INSS), que engloba todos os trabalhadores regidos pela CLT, pelo Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), instituído por entidades pública, além do regime de previdência complementar.
O RGPS não é responsável apenas pela concessão dos benefícios de aposentadoria por idade ou tempo de serviço. Ele também concede outros tipos de benefícios sociais, como pensão por morte, aposentadoria por invalidez, salário maternidade, dentro outros. Segundos dados do Ministério da previdência, no ano de 2015 o total de beneficiários da aposentadoria por díade. A maior parte dos beneficiários, próximo de 65% do total, recebe o piso de um salário mínimo, sendo que 55,9% dos beneficiários eram de mulheres, em grande medida pela maior participação feminina nos benefícios de pensão por morte, que por sua vez é o segundo benefício mais concedido pelo INSS. ´
Já os Regimes Próprios de Previdência Social são estabelecidos pelos entes públicos, incluindo Estados e Municípios, somando mais de 2000 regimes diferentes Brasil afora. Eles atendem os funcionários públicos dessas entidades federativas, possuindo regras próprias, desde que respeitando os limites constitucionais.
Para financiar a concessão destes benefícios, o sistema de seguridade social brasileiro conta com diversas fontes de recursos. Além da contribuição dos trabalhadores da ativa, o sistema conta também com contribuição dos empregadores e com a receita de alguns impostos, como o PIS, a COFINS, parcelas da CSLL entre outras fontes de recursos. Assim sendo, o financiamento do orçamento da seguridade social compreende várias fontes de recursos, não apenas as contribuições individuais dos trabalhadores da ativa.
Outra característica importante da previdência social no Brasil é o fato de que ela é considerada um “regime de repartição simples”, ou seja, o total de recursos arrecadado pelo sistema previdenciário é destinado ao pagamento de benefícios, configurando assim ukma espécie de “pacto geracional”, onde os trabalhadores da ativa atuais pagam os benefícios dos aposentados, na certeza de que a próxima geração contribuirá para pagar seus benefícios. Este regime “solidário” é utilizado pela maioria dos países que possuem previdência pública, fazendo com que o cálculo do valor da contribuição seja feito tendo em vista o pagamento dos benefícios existentes, sem a constituição de reservas e poupança.
O outro regime possível de financiamento da previdência, o chamado “regime de capitalização”, e comumente utilizado nos planos de previdência privada. Nele, a contribuição é individual, não compõe um fundo único e os benefícios são proporcionais à contribuição realizada. Como se pode perceber, esse tipo de regime não propõe nenhum tipo de solidariedade social, nem entre pobres e ricos, nem entre diferentes gerações. Os poucos países que o adotaram em seus regimes de previdência pública tendem a retornar ao regime de repartição, devido ao aumento expressivo de pessoas idosas sem nenhuma cobertura previdenciária, como é o caso recente do Chile.
Por atender mais de 30 milhões de pessoas, beneficiando dezenas de milhões de famílias Brasil afora, a seguridade social possui um elevado impacto econômico no Brasil. Muitas vezes, o benefício previdenciário se constitui como única fonte de recursos das famílias mais pobres, cujos membros mais jovens se encontram desempregados ou em alguma forma precárias de trabalho. Com o piso de um salário mínimo, os benefícios sociais são um dos fatores responsáveis por transformar o salário mínimo em um instrumento central da distribuição de renda no país, em particular a partir de 2003 com a política mais acelerada de valorização salarial.
Apesar de teoricamente ser um instrumento fundamental para o combate à pobreza e para melhorar a distribuição de renda, a previdência brasileira apresenta algumas distorções que, historicamente, fizeram com que seu efeito distributivo seja minimizado. Algumas dessas distorções como a possibilidade dos servidores públicos do RPPS receberem seu salário integral ao se aposentarem, enquanto os trabalhadores do RGPS recebem no máximo o teto do INSS, foram sendo gradualmente corrigidas ao longo das últimas décadas. Outras distorções , como a possibilidade de alguns servidores receberem pensões e aposentadorias acima do limite constitucional, continuam sendo uma fonte de desequilíbrio e privilégios, mantidas por decisões judiciais.
Por fim, existe um grande debate do chamado “déficit da previdência”, que é utilizado como justificativa pelo governo para reformar o sistema previdenciário brasileiro. Segundo o governo, a previdência social brasileira é deficitária em R$ 152 bilhões, desequilíbrio que tende a aumentar com o passar do tempo, devido ao envelhecimento da população. Esse valor, no entanto, representa apenas uma meia verdade: em primeiro lugar, pois ele está sendo calculado no momento de profunda crise econômica, que elevou o desemprego e diminui consideravelmente a arrecadação de contribuições e impostos, reduzindo assim as receitas previdenciárias; em segundo lugar, porque esse cálculo desconsidera que a previdência não é apenas financiada pela contribuição dos trabalhadores, mas por várias outras fontes de recursos, fazendo parte do conceito mais amplo de seguridade social. Até 2013, por exemplo, os dados do Ministério da Previdência mostram que o RGPS urbano era superavitário, enquanto o rural (que possui mais característica de assistência do que de previdência social) era deficitário. Por fim, esse valor desconsidera o expressivo montante de recursos que deveriam estar entrando nos cofres da previdência, mas são desviados ou isentos por sonegação ou decisões de política econômica do governo, como são dos casos da DRU e das desonerações. As renúncias fiscais que seria destinadas à previdência somaram mais de R$ 60 bilhões em 2015, enquanto a DRU retira mais de R$ 60 bilhões do orçamento da seguridade social no mesmo período.Esses valores , somados a sonegação fiscal parcamente combatida, seriam suficientes para sanar o propalado déficit da previdência social.
A proposta de Temer: tirar direitos e manter privilégios
A proposta de Michel Temer para a reforma da previdência, ao invés de atacar os privilégios e sonegadores, ataca diretamente o direito dos trabalhadores e pobres. Ao acabar com a aposentadoria por tempo de serviço, elevar a idade mínima, elevar o tempo mínimo de contribuição , reduzir o valor dos benefícios e desvirtuar completamente os benefícios assistenciais, a reforma do governo Temer atende apenas aos interesses daqueles que não vivem do trabalho, pois estes continuarão sendo desonerados e podendo sonegar livremente.
O primeiro ponto polêmico da proposta do governo é a adoção de uma idade mínima de 65, similar à de países desenvolvidos que apresentam uma expectativa de vida bastante superior à do Brasil. Além disso, ao estabelecer essa mesma idade para homens e mulheres, a proposta ignora a diferença de jornada de trabalho feminina (normalmente superior à do homem, por cuidar dos filhos e da casa) e desconsidera também a idade precoce com que o trabalhador brasileiro adentra o mercado de trabalho. Enquanto nos países desenvolvidos o trabalhador começa a trabalhar em uma idade maia avançada e usufrui por muitos anos de sua aposentadoria (mesmo com a idade de 65 anos), no Brasil o trabalhador terá que trabalhar desde muito cedo para usufruir pouco tempo de seu benefício.
Em segundo lugar, o projeto estabelece o tempo mínimo de 25 anos de contribuição previdenciária para o trabalhador poder receber o benefício (hoje o tempo mínimo é de 15 anos). Caso ele chegue aos 65 anos e não for capaz de comprovar esse tempo mínimo de contribuição, ele deverá seguir trabalhando ou não será capaz de receber sua aposentadoria. O problema é que, devido ao Brasil apresentar um mercado informal muito grande (bastante expandido em tempo de recessão) e uma grande rotatividade no mercado formal, muitos trabalhadores alcançam a idade de 65 anos sem conseguir comprovar os 25 anos de contribuição. Ou seja, muitos trabalhadores brasileiros contribuirão por mais de duas décadas , mas não terão acesso ao benefício previdenciário. Caso finalmente consigam comprovar os 25 anos de contribuição, receberão apenas 70% do benefício máximo que teriam direito. Caso queiram receber 100% deverão contribuir por 49 anos, uma verdadeira impossibilidade para a maior parte dos brasileiros que enfrentam o difícil mercado de trabalho nacional.
Além de limitar pesadamente o acesso aos benefícios de aposentadoria, a proposta do governo Temer ataca diretamente os benefícios com característica assistencial, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a aposentadoria rual. O BPC, benefício social criado para atender as pessoas muito pobres que não tiveram condições de contribuir com a previdência, hoje poder ser requerido por pessoas com 60 anos (65 para mulheres) e renda familiar inferior a ¼ de salário mínimo. A nova proposta de Temer defende que só poderá receber o BPC pessoas com 70 anos (homens e mulheres), idade pouco provável de ser alcançada por pessoas extremamente pobres como os beneficiários do BPC. Além disso, o valor do benefício será desvinculado do salário mínimo, fazendo com que seu poder de compra real caia ao longo dos anos.
Já a aposentadoria rural, benefício social criado para atender o trabalhador rural mais pobre, que trabalha sazonalmente e sem vínculo formal, também será totalmente desvirtuado. Hoje, o trabalhador rural pode se aposentar com 65 anos, caso comprove 15 anos de trabalho no campo. Pela nova proposta, o trabalhador terá que comprovar 25 anos de contribuição, fato raro para trabalhadores rurais pobres.
Em suma, além de limitar brutalmente o acesso a aposentadoria da maior parte dos trabalhadores brasileiros, a proposta de Temer reduz o valor dos benefícios e deixa os mais pobres absolutamente desamparados. Nada faz, no entanto, para limitar e reverter as benesses tributárias e fiscais concedidas aos grandes empresários , que tanta falta fazem ao caixa da previdência social, além de aumentar a retira de recursos da seguridade via expansão da DRU. Também nada faz quanto aos sonegadores , que criminosamente tiram dinheiro da seguridade social, desviando-os para engordar suas fartas contas bancárias. Por fim, não mexe nas aposentadorias especiais acima do teto constitucional, que desfiguram a previdência como um instrumento redistributivo.
Considerações finais
O discurso do déficit da previdência, usado cotidianamente para justificar uma reforma do sistema previdenciário, esconde boa parte da origem dos desequilíbrios. Ao colocar a culpa nas supostas “facilidades” para o trabalhador receber sua aposentadoria, o discurso oficial oculta que os cofres da seguridade social vem sendo esvaziados por decisões e indecisões do governo como a DRU, as desonerações fiscais e a farta sonegação. Oculta também os privilégios de algumas classes de funcionários públicos, que seguem recebendo e acumulando pensões e aposentadorias acima do teto constitucional, sendo poupados pelo atual projeto de reforma previdenciária.
O objetivo não declarado, mas facilmente perceptível, do atual projeto de reforma é o de enfraquecer a previdência pública, empurrando boa parte dos trabalhadores para os braços dos bancos, em busca de fundos de previdência privada. O Objetivo de diminuir os desequilíbrios entre receitas e despesas pode se frustrar caso parte dos trabalhadores passe a acreditar ser mais vantajoso trabalhar informalmente 9ou como PJ) e não contribuir para a previdência, diante do risco de não poder se aposentar nunca. O desmonte do Estado, que começou com a PEC 55, avança pela gradual privatização da Petrobras (e de outras empresas públicas) e passa pelo desmantelamento dos Bancos Estatais (em particular o encolhimento do BNDES), desemboca na descaracterização da previdência social, retirando totalmente o objetivo de constituir um “Estado de bem estar social” no brasil. O objetivo de criar uma sociedade socialmente mais justa, com solidariedade entre ricos e pobres, jovens e idosos, será substituído pelo objetivo dos grandes bancos de lucrar cada vez mais com as necessidades e sonhos do povo brasileiro. É contra esse ataque despudorado contra a /constituição Brasileira que se insurgem os movimentos contrários não sí a essa reforma da previdência, mas ao projeto neoliberal ilegítimo que ela tão bem representa.
Paulo Teixeira é mestres em Direito pela Faculdade de Direito da USP e deputado federal pelo PT-SP.
Guilherme Mello é doutor em Economia pela Unicamp e professor na mesma instituição.
happy wheelsnov 12, 2023 0
out 12, 2023 0
jul 06, 2023 0
maio 31, 2023 0