abr 28, 2018 Air Antunes Artigos 0
Para os brasileiros, não é necessário ter má fé nem ser especialmente tolo para defender os interesses dos EUA como se fossem seus
JESSÉ DE SOUZA
Toda ideologia científica, criada para legitimar os interesses dos poderosos, precisa ter um grão de verdade para produzir uma mentira social convincente.
Assim, a ideologia científica da supremacia moral norte-americana nasce da tese de que o pioneiro protestante ascético criou uma sociedade igualitária de classe média, formada por pequenos empresários familiares no campo e na cidade, baseada na disciplina do trabalho duro, na política controlada pelo cidadão e na honestidade das relações interpessoais e contratuais. Até a Guerra Civil e 1861/1865, essa sociedade do pequeno empresário tinha seu grão de verdade.
OS Estados Unidos que nascem da guerra civil não têm, no entanto, mais nada a ver com esse passado mítico. O pequeno empresário perde qualquer importância econômica para os grandes monopólios econômicos, que passam a dirigir de cima uma política cada vez mais corrompida para atender seus interesses.
Propaganda e indústria cultural manipulativa criam uma esfera pública colonizada pelo dinheiro onde o consumismo substitui a participação politica comunitária.
A riqueza se concentra em poucas mãos e o assalto às riquezas de outros países, como em todo império, é usada para distribuir uma parte do butim para o próprio povo de modo a comprar solidariedade interna. Não obstante, a ideologia cientifica e cultural do “self made man”, do empresário trabalhador e honesto, é, até hoje, a imagem central da “ideologia americana”, para dentro e para fora da nação.
A elite de proprietários brasileiros, assim que termina a escravidão, procura e constrói uma ideologia cientifica que é o espelho invertido da americana para se apresentar como imagem do progresso: se não temos aqui o império do empresário diligente, honesto e trabalhador é apenas porque uma elite atrasada tomou o Estado e a política para seu interesse próprio.
Que nunca tenha existido aqui o “farmer” americano, mas o latifundiário ladrão de terras e assassino de gente, que se muda para a cidade para assaltar, agora, o orçamento do Estado e a sociedade como um todo, não parece perturbar ninguém.
A ideologia norte-americana ajuda a legitimar aqui o mercado da rapina sem freios sobre a população intelectualmente indefesa, produto de uma imprensa venal, que estigmatiza o Estado e a política para torná-los instrumentos dóceis do saque legalizado dos donos do mercado.
É apenas porque o mito nacional dos EUA travestido de ciência é reproduzido aqui na sua versão “vira-lata”, do inferiorizado moralmente, que a “informal” e ilegal “cooperação” entre o Departamento de Justiça americano e a Lava Jato pode se mostrar de público e sem nenhum disfarce.
O procurador Kenneth Blanco, do Departamento de Justiça dos EUA, elogiou, de público, sem qualquer pudor ou vergonha, a “íntima” cooperação com a Lava Jato, que permitiu ações ágeis e rápidas “fora dos procedimentos oficiais” por conta do relacionamento de “confiança individual” entre as equipes.
Que o país de uns tenha ficado mais rico e o país dos outros muito mais pobre, parece ser um mero efeito colateral sem importância.
Em um contexto como este, onde a raposa e a galinha pensam o mundo e compartilham as mesmas ilusões, não se precisa sequer “pagar por fora”, em paraísos fiscais, aos procuradores e juízes envolvidos pelo serviço tão bem feito de acabar com as grandes empresas brasileiras, que eram o suporte de uma inserção internacional autônoma, via Brics, odiado pelos EUA.
Assim, acabar com 1,5 milhão de empregos e com a economia de vanguarda brasileira pode ser vendido como um acordo entre “gentlemen” interessados que a lei prevaleça e que a corrupção, claro, só do país atrasado, seja combatida.
Que os americanos façam muito diferente em casa, que as firmas corruptas sejam protegidas por “acordos secretos” com as autoridades administrativas, para proteger os empregos e os interesses americanos, como mostrado pela insuspeita The Economist em agosto de 2014, também não parece preocupar ninguém.
Enquanto os funcionários norte-americanos são formados dentro de uma geopolítica e de uma ideologia científica centenária de um império que defende com unhas e dentes seus interesses, os nossos procuradores, juízes, generais e economistas só conhecem, quando muito, seu campo muito específico de ação. São vítimas da geopolítica do “vira-lata” e são perpassados por sentimentos de inferioridade aprendidos na escola, na mídia e nas universidades.
Para os brasileiros, não é necessário ter má fé, nem ser especialmente tolo, para defender os interesses norte-americanos como se fossem os seus. Basta ter nascido brasileiro e aprendido na escola e na mídia a ser um vira-lata obediente.
Jessé Souza, sociólogo e escritor
De Carta Capital
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