set 27, 2016 Air Antunes Artigos 0
Nota da Editoria: O artigo “Perdão rapazes”, da colunista da Folha de São Paulo, Tati Bernardi, transcrito na sequência, é uma dura crítica contra o que tem a ver com uma pesquisa da Datafolha. Segundo a pesquisa, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e divulgada no dia 21 de setembro, um em cada três brasileiros acredita que, nos casos de estupro, a culpa é da mulher. Segundo o levantamento, 33,3% da população brasileira acredita que a vítima é culpada. Entre os homens, o pensamento ainda é mais comum: 42% deles dizem que mulheres que se dão ao respeito não são estupradas. A culpabilização da vítima também acontece entre as mulheres, que são as que mais sofrem com o crime: 32% concordam com a afirmação. Para 30% dos homens, a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada.
TATI BERNARDI
Ontem esquentou um pouco, depois do almoço e fui até a padaria comprar um sorvete. Eu estava com um vestidinho desses curtos e leves, de ficar em casa, sem sutiã, e percebi que bastava meio ventinho primaveril para que eu ficasse seminua.
Primeiro, como boa hipocondríaca , senti medo de “tomar friagem”, mas depois lembrei daquela turminha genial (ironia), mais conhecida como “um em cada três brasileiros”, que declarou considerar culpada a mulher que sofre estupro. Pela lógica dessa gente gritantemente provida de intelecto (ironia), se um raio cair na minha cabeça, a culpa é minha por ter cabeça. Se um tubarão comer minha perna, a culpa é minha por ter perna.
A natureza do raio é ser raio, a do tubarão é ser tubarão. Seria então a natureza do homem violentar mulheres e, portanto, caberia a nós, moças honestas que abrem mão de um estuprinho no fim de tarde, só usar moleton GG do Lakers? Um em cada três brasileiros acham que sim. Ou seja, muitas mães acham que sim, muitos pais acham que sim. A soma disso você já sabe: vem aí mais uma geração de adolescentes achando que sim. Chega a dar desespero.
Tentei imaginar qual seria a cena possível caso eu realmente fosse culpada por sofrer alguma bestialidade naquela tarde. Um digno (ironia) senhor me espera sair da padaria para dar o bote. Me empurra em algum beco e eu então caio aos seus pés , pedindo perdão.
Perdão, magnâmio ser, perdão. Eu não deveria ter saído de casa, eu não deveria usar vestidos, eu não deveria ter seios, eu não deveria ter bunda, eu não deveria usar esmalte vermelho, eu não deveria chupar sorvetes por aí, pra quem quiser ver. Eu não deveria ter nascido mulher. Eu não deveria nem ter nascido. Oh, soberano macho, dono do universo, rei supremo defendido pelas pesquisas e pelas pessoas de bem, queira, por gentileza, me desculpar por ter uma vagina. Nunca mais farei isso!
O nobre (ironia) senhor estava lá, tranqüilo na sua vidinha de merda, dentro da sua mentezinha psicopata de merda, com seus impulsos animalescos desenfreados de merda (porém defendido pelas leis, por muitos policiais e por um em cada três brasileiros) e eu, que nojenta, que vagabunda, que safada, fui justamente atrapalhar a sua concentração em ser um grande merda. Uma mulher jamais deve atrapalhar a concentração de um grande merda, já diria um em cada três brasileiros.
Mas a culpa é minha. Na próxima encarnação eu venho com pau, que é pra nunca mais pertencer ao gênero que tanto ultraja e ofende a pacata vida terrestre. Quem mandou sair de casa sem gola alta? Quem mandou fazer as duas piores coisas que uma mulher poder fazer à luz do dia: existir e andar? Agora só me resta pedir clemência de joelhos! E tomar cuidado pra não pagar cofrinho, pois , segundo um em cada três brasileiros, eu poderia sofrer alguma brutalidade e a culpa seria minha. Transcrito do jornal Folha de São Paulo, edição de sexta-feira, 23 de dezembro.
Tati Bernardi é escritora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados . É colunista da Folha de São Paulo
happy wheels
fev 11, 2024 0
jan 05, 2024 0
nov 12, 2023 0
out 12, 2023 0