out 18, 2014 Air Antunes EDUCAÇÃO 0
“Nos últimos anos escrevi alguns livros jornalísticos em que procuro mostrar o grande drama do Rio de Janeiro, e não só dele, do país todo, o gigantesco apartheid social que se desenha há muito tempo. Mas este não é um fenômeno de hoje. O objetivo sempre foi manter a separação entre pobreza e riqueza, a criação das duas cidades separadas, que coexistem, mas que durante os anos 50 ainda mantinham contato. É claro que aquela época, que pode ser considerada uma espécie de ´idade da inocência´, acumulava tensões e conflitos que iriam explodir nas décadas seguinte, como mostro na primeira parte do livro Cidade partida, publicado em 1994. O monstro da violência de hoje já estava sendo gerado naquela época. Era o ovo da serpente. As contradições sociais que naqueles anos 50/60 esperavam apenas o momento histórico para explodir.
Enquanto estava escrevendo esse livro, uma grande reportagem sobre a chacina acontecida em agosto de 1993 em Vigário Geral, na qual 21 pessoas inocentes perderam a vida, eu me empenhei em conhecer por dentro o submundo do tráfico de drogas e os traficantes. Mas também durante 18 meses levantei os dados da pesquisa, trabalhando oito horas diárias em bibliotecas. Li cerca de 30 livros e folheei pilhas de revistas e jornais que abrangiam até 40 anos atrás, porque a minha preocupação era mostrar a evolução da violência no Rio.
É sempre muito difícil fazer um trabalho desses, penetrar num ambiente assim. Para não despertar desconfiança eu me dizia escritor, e não jornalista. Hoje estou muito envolvido no trabalho comunitário do Rio, porque temos a idéia nítida de que é preciso fazer algo concreto e urgente para mudar essa situação. A minha geração- que retratei no livro “1968-o ano que não acabou”, teve de rever aquela atitude teórica que tínhamos de que as coisas só podiam ser revolucionadas pela base. Hoje, fazemos o possível, com as várias campanhas- como a do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho- contra a fome. A utopia desenha um hotizonte possível. A aproximação entre as duas metades cindidas da cidade adota todos os caminhos válidos.pode ser o cultural, por exemplo, o caminho do samba. É um ponto comum que une as pessoas. Desenvolvemos na Casa da Paz, criada em Vigário Geral, oficinas de música e dança, demos cursos, como o de computação, para crianças. É claro que isso não irá resolver todos os problemas, mas é o que dá para fazer no momento.
No Brasil de hoje, de vocês, no Brasil da geração 2000, existem duas tribos: uma é a dourada, pintou a cara para derrubar Collor e foi em frente. A outras não reduz, atua nas periferias e compõe o que começou em 1968 e se prolongou durante 24 anos. Foi a mais alegre e colorida troca de gerações da História, um espetáculo de insurreição e celebração- belo como um rito de passagem. Resta agora saber o que os caras-pintadas farão com a vitória e com o resto de suas vidas.
Foi um amigável acerto de contas, graças ao qual o Brasil talvez não precise mais caminhar para o século 221 empunhando como novidade idéias de uma geração biologicamente concebida meio século antes , na era Vargas. A nova geração cresceu no final de uma década perdida, porque a ciclotímia cívica dos anos 80 desestabilizou as esperanças. O Brasil não era mais um país, era a imagem de um maníaco depressivo. Cada episódio vinha carregado de promessas e, em seguida, de frustrações: diretas-já, eleição de Tancredo Neves, Plano Cruzado. E a era Collor, que chegoui prometendo redenção e acenando com modernidade, produziu um hiperbólico repeteco do processo de dissolução anterior. Nada mais natural, portanto, que em meio àquele presente de futuro incerto se procurasse construir uma utopia não com o porvir, mas com o que foi. 1968 se transformava na própria utopia. E os observadores procuravam ver uma continuidade, lendo 60 onde estava escrito 90.
Mas nada será como antes. A primeira diferença é que a própria idéia de geração parece ter multado. Quem sabe se nestes tempos pós-modernos- do culto do fragmentário e do transitório- cada grupo, cada galera, cada tribo não seja o que antes se chamava uma geração…e a garotada que pintou a cara para sair às ruas não seja a geração 90, mas apenas uma das suas tribos, a mais visível, a mais fotogênica, a mais ruidosa. .
Porque correndo por fora existe uma camada geográfica e socialmente periférica, desvalorizada pela mídia, preocupação apenas de antropólogos e sociólogos e sempre vista com suspeição pela polícia. A pesquisa da Data Brasil a chama de Geração dos Descamisados. São conhecidos como funkeiros por causa da preferência musical, mas possuem características que reforçam um perfil de geração: inconformismo, identidade grupal, capacidade de mobilização e até uma visão particular de mundo. Ridicularizam os “mauricinhos”, os capa-pintadas que saíram às ruas para clamar pelo impeachment de Collor. Não se conhece dessas galeras nenhuma manifestação política convencional. Suas demonstrações ainda não foram decodificadas. A mais impressionante delas ocorreu num domingo de outubro de 1992: o arrastão nas praias da Zona Sul, que provocou um medo apocalíptico na população. Como disse um participante, de 16 anos: ´Nós só queria arrepiar os bacanas, mostrar que a praia não é só deles.´
Essa geração de excluídos não quer ser um corpo estranho, quer ser tratada com naturalidade. A sua utopia é a igualdade, ou seja, o direito à indiferença. Os jovens dos anos 60 tinham a crença iluminista de que a marcha da História era fatalmente no sentido das luzes. O fim do século, e das ilusões, mostra que nem é tudo é assim. Porque o mal, não só o bem, também move a História- e como! A juventude dourada poderá sempre contar aos netos a história extraordinária do dia em que derrubou um presidente. O problema é a ´outra´geração, que tem pouco a contar e menos a perder. A questão para o Brasil, em fase de sucessão geracional, é saber se vamos continuar temendo a periferia como filho bastardo. Ela não é dourada. Ela tem a força de ser real.
As duas metades da cidade precisam ser integradas, se quisermos continuar vivos.
Palestra proferida na Biblioteca Nuto Sant´Anna, São Paulo, em 4 de maio de 1995
Zuenir Ventura, (Além Paraíba, 1 de junho de 1931), jornalista, escritor, colunista do jornal “O Globo”, tendo ganho o Prêmio Jabuti em 1995, na categoria reportagem, pelo livro “Cidade Partida”.É o oitavo postulante da cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras, em sucessão ao romancista João Ubaldo Ribeiro, de quem era amigo próximo. Seu livro “1968: o Ano que Não Terminou” serviu de inspiração para a minissérie “Anos Rebeldes’, produzida pela Rede Globo. Obras selecionadas: “1968: o ano que não terminou” — Editora Nova Fronteira (1989,2006)/ Editora Planeta (2008), “Cidade Partida” — Companhia das Letras (1994), “Inveja: Mal Secreto” — Editora Objetiva (1998), “Chico Mendes: Crime e Castigo: Quinze anos depois”, o autor volta ao Acre para concluir a mais premiada reportagem sobre o herói dos povos da floresta — Companhia das Letras (2003), “1968: O que fizemos de nós” — Editora Planeta (2009), “Sagrada família” — Alfaguara (2012).
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